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Batista de Lima



Muito acertada foi a idéia dos chineses de colocar o nome daquele estádio olímpico de ´Ninho do pássaro´. Se o nome fosse ´Berço da criança´, na certa seria quadrado, como geralmente é quadrado o primeiro leito do bebê ao sair do útero, de formas esféricas. Na certa os chineses concluíram que nessas coisas de berços e ninhos, os pássaros estão mais certos que os homens. O pássaro vem de um ovo que se parte em dois. O ninho tem a forma da banda de um ovo, e ali o filhote se aconchega feliz numa formação continuada antes do alçar do vôo e do entoar do canto de alegria. A criança sai de um ambiente tépido e esférico e é jogada numa prisão fria e quadrada. Aliás, não se sabe se os berços são inspirados em celas de prisioneiros, afinal eles possuem grades, são inespugnáveis, ficam entre quatro paredes e são vigiados. Por isso que no ninho, o filhote de pássaro já treina seus cantos de alegria. No berço a criança já tem sua escola de choro. Os pássaros mais cantam, os homens mais choram. Voltando aos chineses, eles tiveram a idéia de fazer a abertura dos jogos olímpicos às oito horas do dia oito de oito de dois mil e oito. É muito oito, é muito ninho de pássaro. E dizem que para eles o oito é símbolo de felicidade. Para nós é símbolo do infinito, da subjetividade, do sonho. Não foi sem razão que Guimarães Rosa ao terminar de escrever seu livro Grande Sertão: Veredas, desenhou um oito deitado como abertura do livro do sertão que passa a ser escrito pelo leitor, na sua imaginação. O sertão é pois infinito ou como diz o escritor mineiro, ´o sertão está em toda parte´. Da mesma forma, as rodas da bicicleta formam como que um oito deitado. E se observarmos bem, veremos que é nos países do oriente, onde esse meio de transporte é mais utilizado. Para nós, os ocidentais, é triste verificar o nosso afastamento das estruturas redondas. Tudo entre nós é quadrado. As nossas casas são retangulares ou quadradas. Da mesma forma são as portas, as janelas. Se entrarmos na casa e começarmos a observar a partir da cama, observa-se essa profusão de linhas retas. O local onde se ama, se nasce e se morre é uma estrutura retangular. São estruturas muito mais próximas das linhas de túmulos do que do firmamento que nos abre uma dimensão de formas circulares e subjetivas. Se formos à mesa, lá estão linhas retas em suas dimensões. São poucas, ainda, as mesas redondas. Já que a mesa é o parlamento da casa, que todas fossem redondas para favorecimento do diálogo entre os començais, sem distinção de poder, sem necessariamente o dono da casa ter que ficar na cabeceira, com uma visão geral e um poder dominante sobre todos. Dessa mesma forma são os utensílios da casa. A geladeira, o fogão, o televisor, a máquina de lavar e tudo o que lhes cerca é marcado pelas linhas retas, racionais, de dimensões adaptáveis aos compartimentos do ambiente que são todos quadrados. Porque esse medo do redondo, das linhas curvas? Por que somos cada dia mais enclausurados em caixas de cimento armado, todas racionalmente iguais e apertadas que apelidamos de apartamento, quando o nome correto deveria ser apertamentos? Louvável é pois a arquitetura de Niemeyer que sempre abre espaço para o redondo, para linhas curvas. Intercala retas e curvas. Na construção do prédio do Congresso Nacional, ele quebrou o ovo e colocou as duas bandas, uma côncava e outra convexa, mesmo colocando entre as duas aqueles dois blocos gélidos, retangulares, de vários andares. Aqueles dois espigões devem ser um desenho das duas enormes pedras que formam o complexo de Pedra Bonita, entre Pernambuco e Paraíba, local em que ocorreram cenas sangrentas de fanatismo sertanejo. Brasília é um simulacro de Pedra Bonita, o que a torna uma cidade messiânica e até antropofágica. As nossas dores estão vindo do Planalto Central, de um templo que nós mesmos erigimos. A falta de esquinas no plano piloto de Brasília é uma metáfora na construção do maior poema concreto que conhecemos. É uma cidade que tem seu lado ninho, seu lado concha. Ela tem vida enquanto o poder se mexe. É uma cidade semana útil pois os seus pássaros, que sustentam o poder, que formam o molusco da concha, abandonam-na nos dias que não são de trabalho. Assim como a concha, ela só se move quando o molusco/poder atua. É uma cidade que precisa do poder para se construir. A concha é um ninho, é uma banda do redondo. E mesmo que construamos tantas dimensões quadradas e retangulares é bom saber que cada uma delas estabelece uma possibilidade arredondada. Todo ser parece em si redondo. A vida é redonda. Contemplar o ser e sua vida, é instaurar um seu entorno que termina por ser redondo. A luz da transfiguração, mesmo partindo de um ser quadrado, toma dimensões redondas. Tudo que se isola, se arredonda. A solidão é redonda. É bom conhecer, nas palavras de Bachelard, a grandiosidade das imagens do redondo. ´As imagens da redondeza plena nos ajudam a nos congregar em nós mesmos, a nos dar a nós mesmos uma primeira constituição, a afirmar nosso ser intimamente, pelo interior. Porque vivido a partir do interior, sem exterioridade, o ser não poderia deixar de ser redondo´. Assim, pode-se dizer que os chineses, ao privilegiarem o ninho do pássaro e não o berço da criança, demonstraram para nós outros, a necessidade que temos muitas vezes de nos inspirarmos no mundo natural para a construção da nossa modernidade. Aquele ´Ninho do pássaro´ é um signo motivado neste nosso planeta de criações arbitrárias. E a festa de abertura dos jogos olímpicos de 2008 tornou-se uma celebração pós-moderna ao instalar no meio de tanta tecnologia a possibilidade do sonho.

 

26/08/2008.

 

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Batista de Lima



O que se indaga ainda hoje é o porquê de 1968 ser um ano que permanece vivo e discutido, principalmente agora que vira quarentão. Nessas quatro décadas de sua resistência, esse ano culminante do século XX tem comprovado que o plantio no mundo dos sonhos é promessa de boa safra. 1968 foi a última grande colheita do roçado da esperança. A partir de então, começou um despencar cuja única salvação é se agarrar nos seus fios restantes, impregnados de delírio e êxtase, que nossa memória tenta guardar. As palavras chaves daquele momento, entre nós, eram liberdade, juventude, sonho, democratização, paz e amor. Os temas, lá de fora vindos, eram a Guerra do Vietnã, o assassinato de Martin Luther King e as barricadas de Paris. Por aqui o assunto também era a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, no restaurante ´Calabouço´, no Rio de Janeiro, a Passeata dos 100 mil, a prisão de mais de mil estudantes no Congresso da UNE, em Ibiúna, e o fechamento da Faculdade de Filosofia da USP. 1968 foi o ano em que as minorias se deram as mãos e criaram força. Estudantes, operários, gays, mulheres, negros e outros excluídos se solidarizaram e criaram uma inclusão. O ambiente universitário entrou em processo de democratização, o que provocou em cada campus, o choque entre a elite conservadora e os reformistas. Um pouco antes, a morte de Che Guevara já apontava para uma encruzilhada onde o sonho e a realidade teriam que se digladiar, e as perspectivas eram de que a arrancada reformista de maio de 1968 fatalmente iria se chocar com o rolo opressor de uma contra-reforma que erguia suas sólidas trincheiras em todos os setores da sociedade. Foi preciso então procurar uma saída pelo oitão das artimanhas em crescimento. Cresceu o movimento da contracultura, do desbunde, dos grandes festivais, do famoso ´faça amor, não faça guerra´. Apesar de uns dizerem que 1968 está morto, verifica-se que aquele ano é feito fogo de monturo, não se apaga nunca, apenas tem momentos de pouco fogo e alguma fumaça. Prova disso, é que nas comemorações de seus quarenta anos toda uma revisão vem sendo feita em torno do que aconteceu naquele ano. Aquele momento apresentou uma juventude como sujeito do processo histórico na sua luta contra a mentalidade dominante. Esse fenômeno era detectado na música, na literatura e na moda. Cada jovem era um veículo de rebeldia por transportar em si próprio os signos da contracultura. Os cabelos longos, a barba por fazer e as roupas berrantes eram painéis de símbolos dessa revolução. 1968 foi um ano em que a juventude possuía seus ídolos, sua linguagem, seu ´modus vivendi´ à margem do que era institucional.A reação a tudo isso foi tão dura que a existência dos ídolos passou a fenecer a tal ponto que desembocou numa juventude recente, sem rumo, sem entusiasmo e enclausurada em nichos de sobrevida que os shoping center proporcionam. Espaços públicos como praças, ruas e parques se esvaziaram. O silêncio da juventude atual é sintoma de um pacifismo anêmico produzido pela ditadura das grifes e pelo sacolejar entre quatro paredes dos aparelhos das academias. Aquele ano de ruptura nos deixou lições de um socialismo jovem cujas bandeiras eram contrárias à guerra, ao consumismo, à família convencional e à moral sexista. Aflorou uma geração anti-racista, pacifista, libertária, ecologista e feminista. Aquele ano foi rico porque produziu sua narrativa e seus mártires. Suas cicatrizes foram tão profundas que continuam vertendo glórias aos que sucumbiram nas suas utopias. Foi pois um ano que não morreu e que sobrevive como inspiração para que se escreva a página branca do viver de hoje. Aquele marcante ano culminou com o esgotamenteo do modelo fordista. Entre operários e estudantes houve uma aproximação nunca detectada anteriormente, e dessa aproximação surgiu a conclusão de que o ideal não era a acumulação de bens. Que a felicidade estava muito mais no despojamento do que no desfrute incontrolável dos bens de consumo. O pé na estrada era muito mais atraente do que a casa própria com geladeira e televisão. Foi um momento tão festivamente romântico que os festejos em torno do seu aniversário são muito mais uma disputa pelo que restou de seu espólio. Nessa disputa, infeliz daquele que não tem uma cicatriz a mostrar, porque o discurso que impera é aquele entremeado de experiências pessoais. Se se perguntar qual o setor social que mais foi afetado pelos movimentos de 1968, não se tem dúvida que foi o ambiente universitário. Houve uma democratização das universidades. Entre nós, no entanto, essa democratização que houve lá fora não vingou por aqui, dado o endurecimento do regime militar de que éramos vítimas. A transformação do sistema seriado em sistema de créditos que passou a vigorar no ensino universitário foi uma armadilha em que os estudantes caíram. Enquanto se prensava que o novo sistema democratizava nosso acesso a qualquer semestre do curso, por outro lado a turma permanente que existia anteriormente era esfacelada em detrimento do surgimento e manutenção de lideranças estudantis. Esse período também foi marcado pela invasão de ´brazilianists´ que estudaram um Brasil que os brasileiros não haviam estudado. Esses estudos nos retornaram em brochuras e capas duras depois que nossas entranhas ficaram conhecidas lá fora. Essa grande construção que é o Brasil teve seus compartimentos mais íntimas vasculhadas pelos lá de fora sem pedido de licença. Apesar de tudo isso, tivermos nossos ídolos, nossos guias, alguém por aqui confiável: Celso Furtado, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes e Paulo Freire. Coisas bonitas se formaram: o tropicalismo, as comunidades eclesiais de base, as ligas camponesas e o teatro do oprimido. 1968 é memória. Discuti-lo é uma forma de resistência. Como foi um momento de transbordamento de esperança, deve ser lembrado como exemplo de como transformar o poder sem ter que dele se apossar. Foi um momento sublime porque a todo momento questionava a si próprio, desenhava o futuro com um pé no sonho e outro na realidade. Daí que esse futuro não era traçado sem risco. Fomos vítimas de imprecisões no nosso planejamento. Diferentemente do momento atual em que somos informação e não construímos narrativa, somos agora tão marketing, que nossa identidade fenece. Estamos em todo o mundo, e todo o mundo está aqui, o que nos leva a não estarmos em parte alguma. Os sobreviventes de 1968 são aqueles que gritaram nas ruas enquanto não lhes cortaram a voz. São aqueles que perguntam hoje, onde estão os jovens deste país. Uma juventude que não se queima, não ilumina. Estamos vivendo uma penumbra que teima em virar treva.

 

19/08/2008.

 

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Batista de Lima



Uma flor desabrochando entre os muros que me prendem, dão notícias de florestas agoniadas. Um avião, em pantomima pelo céu, vem dizer que só corações de pedra podem resistir a este oitavo dia da criação. O que parecia estar pronto foi declarado imperfeito. Este oitavo dia teima em evitar o nono. Esta laranja sugada sobre a qual nos pomos, cada dia em bagaço vai se tornando. Não posso mais com esses meus ossos, pois meus braços, a serviço de resgates, não têm tempo para meus quilos de medo. Beatriz adolescente numa janela do castelo é imagem entre fumos que empanam essa mente que me instaura. A peneira com que tenho tentado transferir o mar para o sertão em vez de água tem trazido lama preta. Essas águas já de peixes vacinados não são águas, são urinas que os séculos têm vertido. E o rio que apunhala minha aldeia é uma faca só lâmina no coração de quem o mira. Triste grota de meu pé de serra, de olhos tristes, velando campos feridos de morte. Minha terra tem olheiras que os anos não apagam mais, e as aves que ali poleiram não gorgeiam nem têm asas. Já os meninos que nos chegam, salpicados de agulhas, são tirados de suas mães à força de bisturis. E os leites que eles bebem são vacas que vêm nas latas com berros silenciados de bezerros órfãos de pais. Se quero chorar não tenho lágrimas que me rolem das faces por não ter mais face que me seja minha. Verdes campos que me viram verde, milharais de espigas bonecando, onde está a melancia que um dia passou nadando? Este oitavo dia da criação se tornou descriação, e o criador na sua rede, de olhar lacrimejante, vê o mar virar sertão. São baleias que se escondem nos cofundós das águas fundas, cardumes que são pescados nas redes de arrastão. São manchas que o mar vomita, botando treva na areia, são ondas que se revoltam e um sertão que vira mar. E o rio que passa aqui perto é uma artéria de balseiros cinza feitos de latas, vidros e plásticos por onde se esvai o que sobrou da minha terra natal. Sujas mares bravios da minha terra desmatada, a borra que tu me envias já eu tinha mandado de cá. O cancro que atormenta os peixes que vêm daí, fui eu que mandei daqui. Meu querido mar de antanho onde anda o verde de tuas ondas que a musa de meus pobres versos ousou um dia roubar de ti para o enfeite dos olhos e mistério do olhar? Certo dia em banho de chuva, senti a água saloba que despencava das nuvens. Depois me explicaram, que aviões faziam chuva nos céus da minha pátria. Triste ironia, coisas destes tempos novos, a terra também salgou-se daquelas lágrimas neblinantes. Minha terra tem salmoura e meus bosques não têm mais flores. Ao lado de minha choupana, tinha um riacho de águas virgens, hoje há um vale desdentado, vertendo lágrimas, baba e bacilo dos campos tuberculosos. E em campos mais adiante há um monstro pica-pau, bicando a pele da terra e tirando das suas artérias o sangue negro que os mistérios construíram. Por isso que essa febre intensa que acomete este planeta são sintomas de grandes úlceras que escavamos nessa nossa mãe de todos. Verdes campos de vergéis, onde fostes esconder o cheiro da flor da manhã, o doce do fruto da tarde, o orvalho da noite na relva e o luar de agosto no vale? Se eu soubesse que um dia não mais ar respiraria, teria enchido os potes da brisa aracati, que farfalhava na serra e entrava de casa a dentro sem nunca pedir licença. Tristes ruas fumacentas, velhos campos encoivarados, onde a vida se escondeu, que deixou de mandar notícias? Um dia desses ali, numa lagoa funda e piscosa, violentada de esgotos e lixo da burguesia, os peixes se revoltaram, suicidando-se fora da água. A criancinha que me cerca, quer crescer e se nutrir, estudar e festejar a infância no seu tempo, mas coitada ela não sabe do mundo pobre e falido que um dia eu deixei pra ela. Já os rios, um tempo atrás, eram artérias desinibidas onde a seiva da terra pura se transformava em vida. Hoje essas artérias precisam de cateterismo, de uma angioplastia, com mil pontes de safena e quiçá de um transplante ou talvez de transposição. Debaixo desses rios entanto outros rios se instalaram com suas águas filtradas no coador feito da terra. Pois também esses rios, escondidos lá embaixo, já foram todos tingidos com a nódoa escura do veneno que a superfície engoliu. Por isso é que ´melhor é filtrar este rio/sugar o sujo do seu sangue/e boca a boca disputarmos/nossos últimos suspiros´. Potáveis líquidos de morte anunciada, vou guardá-los nos meus sótãos, escondê-los em socavões ou em cofres bem trancados pois quando por aqui chegar a grande guerra da sede, eu terei minha trincheira para os últimos goles de vida. Minha pobre mãe natureza, será que há como salvar tua grande constipação? Essas chagas que injetamos em tuas artérias latejantes e a fumaça que temos lançado em teus pulmões milenares são pecados de filhos maus em petição de perdões. Sim, porque este oitavo dia de desmantelo tem estado entardecendo e tem muita gente que já prepara a aurora do nono dia. Até Deus está empenhado nessa manhã salvadora, conforme verbera o poeta em seus versos quintanares: ´quando a água desaparecer,/que será dos homens,/que será das coisas,/dos verdes e dos bichos?/Que será de Deus?´ O criador necessita que sua obra se mantenha, pois só se mantém criador se sua obra existir. Não foi fácil ao criador, a partir do primeiro dia, criar o céu e a terra, depois, o dia e a noite; depois a manhã e a tarde; vindo em seguida, a criação em separado, da terra e do mar, na terra colocar árvores e frutos, no mar colocar a multidão dos seus peixes. Foi também uma grande arte separar dia e noite; a luz, das trevas. Depois de tudo isso criado, ele quis deixar alguém para continuar seu trabalho criativo, foi aí que criou o homem. Repousou no sétimo dia e deixou então que aquele que mais lhe era semelhante continuasse seu trabalho a partir do dia oitavo. O homem, no entanto, tem passado os pés pelas pernas, tem feito a roda grande rodar na roda menor, tem chegado a inverter, com sua insatisfação, toda criação divina. Agora está pagando pela ânsia de ser contrário. Que esse oitavo dia produza uma manhã de sol, antes desse sol se pôr.

 

12/08/2008.

 

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