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  • Foto do escritorBatista de Lima

Oitavo dia da criação

Batista de Lima



Uma flor desabrochando entre os muros que me prendem, dão notícias de florestas agoniadas. Um avião, em pantomima pelo céu, vem dizer que só corações de pedra podem resistir a este oitavo dia da criação. O que parecia estar pronto foi declarado imperfeito. Este oitavo dia teima em evitar o nono. Esta laranja sugada sobre a qual nos pomos, cada dia em bagaço vai se tornando. Não posso mais com esses meus ossos, pois meus braços, a serviço de resgates, não têm tempo para meus quilos de medo. Beatriz adolescente numa janela do castelo é imagem entre fumos que empanam essa mente que me instaura. A peneira com que tenho tentado transferir o mar para o sertão em vez de água tem trazido lama preta. Essas águas já de peixes vacinados não são águas, são urinas que os séculos têm vertido. E o rio que apunhala minha aldeia é uma faca só lâmina no coração de quem o mira. Triste grota de meu pé de serra, de olhos tristes, velando campos feridos de morte. Minha terra tem olheiras que os anos não apagam mais, e as aves que ali poleiram não gorgeiam nem têm asas. Já os meninos que nos chegam, salpicados de agulhas, são tirados de suas mães à força de bisturis. E os leites que eles bebem são vacas que vêm nas latas com berros silenciados de bezerros órfãos de pais. Se quero chorar não tenho lágrimas que me rolem das faces por não ter mais face que me seja minha. Verdes campos que me viram verde, milharais de espigas bonecando, onde está a melancia que um dia passou nadando? Este oitavo dia da criação se tornou descriação, e o criador na sua rede, de olhar lacrimejante, vê o mar virar sertão. São baleias que se escondem nos cofundós das águas fundas, cardumes que são pescados nas redes de arrastão. São manchas que o mar vomita, botando treva na areia, são ondas que se revoltam e um sertão que vira mar. E o rio que passa aqui perto é uma artéria de balseiros cinza feitos de latas, vidros e plásticos por onde se esvai o que sobrou da minha terra natal. Sujas mares bravios da minha terra desmatada, a borra que tu me envias já eu tinha mandado de cá. O cancro que atormenta os peixes que vêm daí, fui eu que mandei daqui. Meu querido mar de antanho onde anda o verde de tuas ondas que a musa de meus pobres versos ousou um dia roubar de ti para o enfeite dos olhos e mistério do olhar? Certo dia em banho de chuva, senti a água saloba que despencava das nuvens. Depois me explicaram, que aviões faziam chuva nos céus da minha pátria. Triste ironia, coisas destes tempos novos, a terra também salgou-se daquelas lágrimas neblinantes. Minha terra tem salmoura e meus bosques não têm mais flores. Ao lado de minha choupana, tinha um riacho de águas virgens, hoje há um vale desdentado, vertendo lágrimas, baba e bacilo dos campos tuberculosos. E em campos mais adiante há um monstro pica-pau, bicando a pele da terra e tirando das suas artérias o sangue negro que os mistérios construíram. Por isso que essa febre intensa que acomete este planeta são sintomas de grandes úlceras que escavamos nessa nossa mãe de todos. Verdes campos de vergéis, onde fostes esconder o cheiro da flor da manhã, o doce do fruto da tarde, o orvalho da noite na relva e o luar de agosto no vale? Se eu soubesse que um dia não mais ar respiraria, teria enchido os potes da brisa aracati, que farfalhava na serra e entrava de casa a dentro sem nunca pedir licença. Tristes ruas fumacentas, velhos campos encoivarados, onde a vida se escondeu, que deixou de mandar notícias? Um dia desses ali, numa lagoa funda e piscosa, violentada de esgotos e lixo da burguesia, os peixes se revoltaram, suicidando-se fora da água. A criancinha que me cerca, quer crescer e se nutrir, estudar e festejar a infância no seu tempo, mas coitada ela não sabe do mundo pobre e falido que um dia eu deixei pra ela. Já os rios, um tempo atrás, eram artérias desinibidas onde a seiva da terra pura se transformava em vida. Hoje essas artérias precisam de cateterismo, de uma angioplastia, com mil pontes de safena e quiçá de um transplante ou talvez de transposição. Debaixo desses rios entanto outros rios se instalaram com suas águas filtradas no coador feito da terra. Pois também esses rios, escondidos lá embaixo, já foram todos tingidos com a nódoa escura do veneno que a superfície engoliu. Por isso é que ´melhor é filtrar este rio/sugar o sujo do seu sangue/e boca a boca disputarmos/nossos últimos suspiros´. Potáveis líquidos de morte anunciada, vou guardá-los nos meus sótãos, escondê-los em socavões ou em cofres bem trancados pois quando por aqui chegar a grande guerra da sede, eu terei minha trincheira para os últimos goles de vida. Minha pobre mãe natureza, será que há como salvar tua grande constipação? Essas chagas que injetamos em tuas artérias latejantes e a fumaça que temos lançado em teus pulmões milenares são pecados de filhos maus em petição de perdões. Sim, porque este oitavo dia de desmantelo tem estado entardecendo e tem muita gente que já prepara a aurora do nono dia. Até Deus está empenhado nessa manhã salvadora, conforme verbera o poeta em seus versos quintanares: ´quando a água desaparecer,/que será dos homens,/que será das coisas,/dos verdes e dos bichos?/Que será de Deus?´ O criador necessita que sua obra se mantenha, pois só se mantém criador se sua obra existir. Não foi fácil ao criador, a partir do primeiro dia, criar o céu e a terra, depois, o dia e a noite; depois a manhã e a tarde; vindo em seguida, a criação em separado, da terra e do mar, na terra colocar árvores e frutos, no mar colocar a multidão dos seus peixes. Foi também uma grande arte separar dia e noite; a luz, das trevas. Depois de tudo isso criado, ele quis deixar alguém para continuar seu trabalho criativo, foi aí que criou o homem. Repousou no sétimo dia e deixou então que aquele que mais lhe era semelhante continuasse seu trabalho a partir do dia oitavo. O homem, no entanto, tem passado os pés pelas pernas, tem feito a roda grande rodar na roda menor, tem chegado a inverter, com sua insatisfação, toda criação divina. Agora está pagando pela ânsia de ser contrário. Que esse oitavo dia produza uma manhã de sol, antes desse sol se pôr.

 

12/08/2008.

 

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