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Batista de Lima



Aquela segunda-feira iniciou-se com a voz capionga do Dr. José Teles, misto de esculápio do corpo e encantador da alma, falando na desdita de José Alcides Pinto. Queria saber onde poderia se fazer um velório digno da grandeza desse poeta que o Acaraú presenteou ao mundo, para felicidade dos homens, e eternidade das musas. Minha primeira reação foi dizer que Alcides Pinto era imorredouro. Era impossível que a indesejada das gentes tivesse alguma chance com ele. Mas é que eu via ali a obra grandiosa desse escritor e sua personalidade destemida. Via seu exemplo literário para gerações da nossa literatura, dos anos 1940 até hoje. O oitentão mais jovem do nosso conhecimento. Um escritor que derivou do concretismo, passando pelo surrealismo e desembocando no fantástico, com mestria e volúpia criativa. Guru da minha geração, exemplo de criação, latifundiário de um legado de rebeldia sem par nas nossas letras. Alcides Pinto foi um rastreador de signos, um inventor de mitos, povoador da ribeira do Acaraú, plantador de armadilhas metafóricas e avatar dos veteranos e neófitos da poesia. Nascido em 23 de outubro, de 1923, em São Francisco do Estreito, distrito de Santana do Acaraú, na zona norte cearense, cedo iniciou sua vida picaresca. Bedel de aluno, no colégio Pio Americano, do Rio de Janeiro, onde se diplomou em Jornalismo e Biblioteconomia, jornalista profissional, redator do MEC, professor concursado da UFC, um dia abandonou tudo e resolveu criar cabras e versos. Implantou o Concretismo no Ceará e sempre se apresentou como polígrafo, teatrólogo, crítico literário, devoto de São Francisco e discípulo de Baudelaire. Alcides Pinto dançou cirandas com a morte, sua concubina, megera, musa e companheira mais rabugenta. José Alcides Pinto, magro como o rio Acaraú, quando escreveu a biografia desse rio, em versos, não ficou claro quem seria o rio e quem seria o poeta. Seria o rio cantando o poeta ou o poeta cantando o rio? São dois vates compridos, longamente compridos, trotando versos numa disputa que leva de embolada os catadores de siri, verdadeiros guerreiros da fome, numa fúria, num enigma de águas premonitórias. José Alcides Pinto, um anjo demolidor, um abutre verde pousado numa colina mágica, um dragão criador de demônios em pleno equinócio, numa insônia de plenilúnio pós-apocalíptica. Um pastor de tempestades, um desafio às potestades, um permanente relâmpago, um corisco, um mago. Guru de toda uma geração de escritores, poetas, beletristas, boêmios, escribas, cronistas da corte e dos lupanares, das igrejas e dos hospícios, criador de cabras nunca chegou às vacas. Sacro e profano, rural e urbano, dionisíaco e apolíneo, José Alcides Pinto continua um desafio. Seu texto é uma ferida exposta que tentamos cicatrizar a cada leitura, seu verso é um açude em permanente sangria, uma explosão alada de fogo, terra, água e ar. Alcides Pinto é um escritor que incomoda. Até para retratá-lo, numa crônica, fica difícil pois tida como gênero menor por alguns, intermediária entre literatura e jornalismo, suas dimensões se tornam insuficientes para conter a grandiosidade de um Alcides Pinto. Não dá para dizer tudo, nem se sabe como apresentar no texto uma figura multifacetada, inspiradora e rebelde, forte nas atitudes e frágil na mística. Ele extrapola dimensões. Ao se escrever sobre Alcides Pinto precisa-se começar por um pedido de desculpas. Primeiro pelo fato dele fazer questão de ser chamado de José Alcides Pinto. Essa já é uma razão mística entre tantas outras que cultivou. Depois, pelo fato de que o poeta era diferente de todos os seus seguidores, ou não, na literatura. Uma figura inimitável pelo fato de sua escolha de vida fugir do tributável, do convencional, da falsa moral e de outros cacoetes que homogeneízam as pessoas mas que não conseguiu laçá-lo. Em Alcides Pinto, a relação dos principais títulos de suas obras já provocam arrepios, conduzindo o observador a uma atmosfera fantástica, onde terror e latência sensual se imbricam antes dos portais das obras serem desvendados. Relicário pornô, Os amantes, Entre o sexo: a loucura/a morte vêm mesclados com outros lançamentos, como: O criador de Demônios, A estação da morte e Os verdes abutres da colina. Multifacetado, polêmico, maldito e bendito, objetivo e subjetivo José Alcides Pinto nos deixa um desafio: que alguém se atreva a inventariá-lo sem se envolver literariamente em alguma das suas vertentes estéticas e éticas. O desafio está lançado.

 

15/07/2008.

 

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Batista de Lima



Ele havia nascido em terras de Portugal. Até pelo nome dava para desconfiar: Carlos Licurgo Gusmão de Lavor. Depois de maduro, extirpou as duas primeiras letras de seu nome e dos sobrenomes e alcunhou-se de Calígula. Coincidentemente, quanto mais amadurecia de carnes, mais devasso ficava de costumes. Por último arranjara duas bandeiras: a nudez e o câncer. O médico, quando olhou os exames, deu-lhe três meses de vida, com medicação, e menos que isso, se continuasse com as bebedeiras que promovia todas as noites no Barbicha. Barbicha, o dono do bar, era roqueiro aposentado e foi dar com os costados naquelas brenhas dos confins. Cidadezinha encabulada, ali de cócaras na beira do rio, Mamona era o tipo de lugarejo que cochilava quando não dormia de tanto não acontecer nada. Mas as noites eram de volúpia musical naquele barzinho de música estranha, único local onde a vida latejava por aquelas bandas. E foi lá, montado nos acordes de Jimmy Hendrix e Janis Joplins, que Calígula anunciou seu fim próximo e seu modelo de velório. Queria por que queria ser enterrado nu. Queria partir como chegou ao mundo, naturalmente. Se Deus o mandara nu, precisava, por questão de respeito, recebê-lo de volta, da mesma maneira. Ninguém no bar quis levar a sério essa conversa de nudez em velório. Foi necessário que três dias depois Calígula trouxesse seu testamento passado no cartório de Manuel Macário, com firma reconhecida e assinado por três testemunhas. Ali estava escrito que suas roupas passariam para o cego Luís Preto, seus bens em ouro e prata, que se resumiam em um relógio, um anel, uma caneta e um cordão, ficariam com a quenga Bilica, que o aconchegava nas horas duras e o acomodava nas trovoadas. O terreno que comprara ao chegar d´além mar seria doado ao santo padroeiro São Sebastião. A poupança que retinha em um banco da capital ficaria a metade para o juiz e a outra metade para o chefe do destacamento. Sua coleção de bebidas, livros, discos e revistas pornográficas seria colocada à disposição dos freqüentadores do Barbicha. Só tinha um detalhe, no final estava escrito que se sua vontade de ser velado e enterrado nu não fosse atendida, todos os bens seriam entregues a seus sobrinhos de Portugal. Tudo explicado, cópias do seu testamento foram distribuídas em toda Mamona e até lido na radiadora Voz de Cristal. Um caixeiro viajante, hospedado na pensão de Ana Bertioga, ouviu tudo, pôs nos alforges do acrescentar e saiu anunciando pelas ribeiras da região. Com três dias chegou a Mamona o primeiro jornalista para entrevistar Calígula e seus herdeiros de cartório. Todos estavam de acordo com o que estava escrito. A notícia tomou corpo e desembarcou de trem, com mala e cuia, na Estação Central, da capital do estado. Mamona entrou no mapa e foi invadida por câmeras, microfones e aparelhos de fax. Criaram até uma central de jornalismo numa saleta da casa paroquial. Padre Marcondes estava numa dúvida cruel. Se celebrasse a missa de corpo presente para um morto despido, poderia ser sacrilégio, mas se deixasse de receber para a paróquia, uma fazenda de uma légua quadrada, com três açudes grandes, aviamento, engenho, pocilga, bulandeira e boiada de duzentos cabeças, o bispo não o perdoaria. Assim, Mamona partiu-se em duas. De um lado o apoio dos beneficiados; de outro, a repulsa dos esquecidos. Não era possível um escândalo daqueles, um corpo nu, em cima de uma tábua, sendo conduzido por pinguços, cruzando a cidade, da igreja até ao cemitério. Era caso de polícia. O juiz tirou férias, o delegado pediu licença para tratamento de saúde e padre Marcondes foi participar de um demorado retiro na sede da diocese. Enquanto isso, Calígula estava treinando sua nudez. Em casa não se vestia mais e mal chegava no Barbicha, já se desfazia das vestes da forma mais natural. Era tão natural e espontâneo seu gesto que alguns companheiros de copo o imitavam, e Mamona estava aos poucos se tornando o paraíso do nudismo. Já estava ficando comum alguns casais, trajados de Adão e Eva se banharem ali em plena luz do dia nas águas inocentes do Rio das Almas. Uma jornalista da capital já estava de striper no Barbicha todas as noites, faturando alto com sua nudez sarada. As beatas estavam deixando a cidade sem olhar para trás para não virar estátua de sal. Mamona virou Sodoma, e Calígula virou ídolo de toda uma geração. O laboratoriozinho da cidade teve sua clientela aumentada porque o sexo rolava solto e as pessoas queriam saber como estavam, como prevenção, depois que um entregador de leite apareceu com AIDS. Diante de tanta pândega, Calígula recebeu convite de um famoso laboratório da Capital para fazer todos os exames que quisesse, gratuitamente, para saber em que estágio estava sua moléstia. Incontinenti, uma funerária famosa, financiada com capital estrangeiro e possuidora de grande cemitério e forno crematório ofereceu-se para realizar as exéquias e ainda promover o acontecimento na mídia internacional antes e depois do desfecho. Seria o primeiro sepultamento oficial de um defunto nu na história das grandes funerárias. Calígula, no entanto, preferiu, primeiramente, fazer uma bateria de exames no laboratório famoso para depois assinar o contrato com a funerária. Acontece que três dias depois, para desespero seu e do batalhão de repórteres que o acompanhavam saiu o resultado inesperado dos seus exames. Calígula estava em perfeita saúde, levando como moléstia em seu corpo, apenas uma unha encravada no dedão do pé esquerdo, uma costela fraturada mas já calcificada do tempo em que jogava bola, e um velho sinal no canto da boca do tempo de menino, quando tivera boqueira. Não possuindo nenhum sinal de câncer, investigou-se no laboratório de Mamona e concluiu-se que a funcionária novata havia trocado seus exames com os de um velhinho que morrera saudável no papel e corroído da próstata. Diante do acontecido, Calígula vestiu-se de gajo e embarcou clandestino para Portugal num navio do Loide e nunca mais pôs os pés em Mamona. O problema que deixou foi com relação às suas heranças cuja disputa continua entre seus sobrinhos, os testamentados e ele próprio.

 

08/07/2008.

 

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Batista de Lima



Tabuleiro do Norte é uma cidade cearense da microrregião do Baixo Jaguaribe, emancipada em 1957 e possuindo hoje em torno de 30.000 habitantes. Não possui estação de rádio, nem escola de ensino superior, apenas duas de ensino médio. Fica a 200 quilômetros de Fortaleza e é conhecida pela grande quantidade de caminhoneiros entre seus habitantes, além de ter sido moradia por muitos anos dos famosos poetas populares Otacílio Batista e seus irmãos Lourival e Dimas. Agora os tabuleirenses ganharam um destaque nacional. Seu nome: Marivalde Monteiro Maia. Professora Marivalde desenvolve diante da Associação Cultural e Fé de Barrinha, um projeto cultural que abrange artesanato, leitura e teatro, para moradores de cinco a setenta anos. Com o nome de ´Cultura-Tradição, leitura e arte solidária´, ela inscreveu seu projeto no Prêmio Viva Leitura, dos Ministérios da Cultura e da Educação. Além do seu projeto, mais 1854 se inscreveram em todo o Brasil, dos quais foram escolhidos 15 trabalhos finalistas, 5 em cada categoria: bibliotecas públicas, privadas e comunitárias; escolas públicas e privadas; bem como pessoas físicas, universidades e instituições da sociedade que desenvolvem trabalhos na área da leitura. Pois em toda a região Nordeste o único Projeto premiado foi o de Tabuleiro do Norte. Em mesas improvisadas com restos de placas de refrigerantes, diante de uma biblioteca com poucas condições ambientais e um teatro ao ar livre, ela promove gincanas, encenações teatrais, artesanato, saraus literários, cursos de empreendedorismo, literatura de cordel e oficina de reciclagem de materiais. O que ela promove é o exercício da leitura nas diversas linguagens. Produz bens culturais, mantendo as tradições locais. O interessante no projeto é que a leitura se completa no transpor os limites do livro e se conclui no palco, onde populares de todas as idades, se caracterizam como podem e se tornam personagens de brilhantes encenações. Por isso que o projeto se estrutura em ações culturais e educativas, ações recreativas e ações de integração comunitária. As atividades artísticas são as que mais atraem as pessoas e se desenvolvem em torno de artes cênicas, artes plásticas, literatura, música e dança. É pois admirável que numa comunidade pobre e desassistida, todas essas atividades sejam desenvolvidas a ponto de resultarem numa transformação das pessoas. Como se vê, o ponto de partida de tudo o que se promove em torno do projeto é a leitura. Mas essa leitura não se resume na fria relação autor/leitor, mas na relação autor/leitor/comunidade. O desafio é ir até onde a leitura possibilita. É ter o livro como ponto de partida e deixar que o leitor repasse o texto numa prática que torna todos os circunstantes também leitores. O livro é o pretexto para a mudança de comportamento não do leitor, apenas, mas dos que lhe cercam. O leitor é intermediário entre o livro e a ação cultural que desenvolve. Essa é a real leitura de que carecem muitos jovens de hoje. O Ceará possui 184 municípios, muitos com mais condições do que Tabuleiro do Norte para o desenvolvimento de ações como essa. Acontece que estão empolgados muito mais com a cultura alienígena que pulveriza as manifestações locais. A indústria cultural tende a globalizar seus produtos de grife, sepultando manifestações como essa. No entanto, ainda há salvação. Iniciativas como essa de Tabuleiro é que comprovam que mesmo o mundo estando em todo canto, todo canto não está no mundo. Temos, ao longo dos dias, assistido a promoções midiáticas em torno de aconteceres supérfluos em detrimento de eventos como esse de Tabuleiro do Norte. É preciso que o prefeito e seus nove vereadores, da pequena Tabuleiro, se mirem no exemplo de Marivalde de como se faz sem interesses pessoais. Não precisa se aproximarem, tanto eles como outras autoridades estaduais e adotarem o projeto com ofertas mirabolantes, eleitoreiras e especulativas. Marivalde e sua gente não necessitam do grande pai, pois nasceram e cresceram por obra e arte de si próprios. O que eles precisam agora é servir de exemplo. O projeto desenvolvido em Tabuleiro do Norte precisa ser imitado e não apadrinhado. Tenho assistido a palestras de intelectuais que importamos para, impertigados em teorias e mais teorias, bem pagos e bem hospedados, enchem nossas cabeças de dúvidas e deixam nossos bolsos vazios em seminários caríssimos. Gostaria de assistir a uma palestra da professora Marivalde Monteiro Maia. Ali na minha frente, numa mesa simples, numa sala muito mais, a contar sua experiência. Como nasceu sua idéia, quais são seus planos e o que esses milhares de municípios brasileiros podem fazer. Que me permitam os irmãos Batista com sua verve, os caminhoneiros com suas botas de sete léguas, o rio Jaguaribe com suas enchentes, as carnaubeiras com seus acenos, os valentões do vale, mas a bola da vez chama-se Marivalde Monteiro Maia. Não conheço seu curriculum vitae, seu memorial, nem preciso saber. Essa é minha pós-doutora em Antropologia, em Sociologia, em Letras, em Educação, mesmo se nunca tiver entrado numa faculdade. E Tabuleiro do Norte entra em definitivo no mapa do Brasil cultural. Quem conseguiu essa façanha foi essa moça simples, referendada por uma população simples que conseguiu sua verdadeira emancipação não em 1957, mas agora, com a grandiosidade e o alcance desse projeto.

 

01/07/2008.

 

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