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A nudez de Calígula

Batista de Lima



Ele havia nascido em terras de Portugal. Até pelo nome dava para desconfiar: Carlos Licurgo Gusmão de Lavor. Depois de maduro, extirpou as duas primeiras letras de seu nome e dos sobrenomes e alcunhou-se de Calígula. Coincidentemente, quanto mais amadurecia de carnes, mais devasso ficava de costumes. Por último arranjara duas bandeiras: a nudez e o câncer. O médico, quando olhou os exames, deu-lhe três meses de vida, com medicação, e menos que isso, se continuasse com as bebedeiras que promovia todas as noites no Barbicha. Barbicha, o dono do bar, era roqueiro aposentado e foi dar com os costados naquelas brenhas dos confins. Cidadezinha encabulada, ali de cócaras na beira do rio, Mamona era o tipo de lugarejo que cochilava quando não dormia de tanto não acontecer nada. Mas as noites eram de volúpia musical naquele barzinho de música estranha, único local onde a vida latejava por aquelas bandas. E foi lá, montado nos acordes de Jimmy Hendrix e Janis Joplins, que Calígula anunciou seu fim próximo e seu modelo de velório. Queria por que queria ser enterrado nu. Queria partir como chegou ao mundo, naturalmente. Se Deus o mandara nu, precisava, por questão de respeito, recebê-lo de volta, da mesma maneira. Ninguém no bar quis levar a sério essa conversa de nudez em velório. Foi necessário que três dias depois Calígula trouxesse seu testamento passado no cartório de Manuel Macário, com firma reconhecida e assinado por três testemunhas. Ali estava escrito que suas roupas passariam para o cego Luís Preto, seus bens em ouro e prata, que se resumiam em um relógio, um anel, uma caneta e um cordão, ficariam com a quenga Bilica, que o aconchegava nas horas duras e o acomodava nas trovoadas. O terreno que comprara ao chegar d´além mar seria doado ao santo padroeiro São Sebastião. A poupança que retinha em um banco da capital ficaria a metade para o juiz e a outra metade para o chefe do destacamento. Sua coleção de bebidas, livros, discos e revistas pornográficas seria colocada à disposição dos freqüentadores do Barbicha. Só tinha um detalhe, no final estava escrito que se sua vontade de ser velado e enterrado nu não fosse atendida, todos os bens seriam entregues a seus sobrinhos de Portugal. Tudo explicado, cópias do seu testamento foram distribuídas em toda Mamona e até lido na radiadora Voz de Cristal. Um caixeiro viajante, hospedado na pensão de Ana Bertioga, ouviu tudo, pôs nos alforges do acrescentar e saiu anunciando pelas ribeiras da região. Com três dias chegou a Mamona o primeiro jornalista para entrevistar Calígula e seus herdeiros de cartório. Todos estavam de acordo com o que estava escrito. A notícia tomou corpo e desembarcou de trem, com mala e cuia, na Estação Central, da capital do estado. Mamona entrou no mapa e foi invadida por câmeras, microfones e aparelhos de fax. Criaram até uma central de jornalismo numa saleta da casa paroquial. Padre Marcondes estava numa dúvida cruel. Se celebrasse a missa de corpo presente para um morto despido, poderia ser sacrilégio, mas se deixasse de receber para a paróquia, uma fazenda de uma légua quadrada, com três açudes grandes, aviamento, engenho, pocilga, bulandeira e boiada de duzentos cabeças, o bispo não o perdoaria. Assim, Mamona partiu-se em duas. De um lado o apoio dos beneficiados; de outro, a repulsa dos esquecidos. Não era possível um escândalo daqueles, um corpo nu, em cima de uma tábua, sendo conduzido por pinguços, cruzando a cidade, da igreja até ao cemitério. Era caso de polícia. O juiz tirou férias, o delegado pediu licença para tratamento de saúde e padre Marcondes foi participar de um demorado retiro na sede da diocese. Enquanto isso, Calígula estava treinando sua nudez. Em casa não se vestia mais e mal chegava no Barbicha, já se desfazia das vestes da forma mais natural. Era tão natural e espontâneo seu gesto que alguns companheiros de copo o imitavam, e Mamona estava aos poucos se tornando o paraíso do nudismo. Já estava ficando comum alguns casais, trajados de Adão e Eva se banharem ali em plena luz do dia nas águas inocentes do Rio das Almas. Uma jornalista da capital já estava de striper no Barbicha todas as noites, faturando alto com sua nudez sarada. As beatas estavam deixando a cidade sem olhar para trás para não virar estátua de sal. Mamona virou Sodoma, e Calígula virou ídolo de toda uma geração. O laboratoriozinho da cidade teve sua clientela aumentada porque o sexo rolava solto e as pessoas queriam saber como estavam, como prevenção, depois que um entregador de leite apareceu com AIDS. Diante de tanta pândega, Calígula recebeu convite de um famoso laboratório da Capital para fazer todos os exames que quisesse, gratuitamente, para saber em que estágio estava sua moléstia. Incontinenti, uma funerária famosa, financiada com capital estrangeiro e possuidora de grande cemitério e forno crematório ofereceu-se para realizar as exéquias e ainda promover o acontecimento na mídia internacional antes e depois do desfecho. Seria o primeiro sepultamento oficial de um defunto nu na história das grandes funerárias. Calígula, no entanto, preferiu, primeiramente, fazer uma bateria de exames no laboratório famoso para depois assinar o contrato com a funerária. Acontece que três dias depois, para desespero seu e do batalhão de repórteres que o acompanhavam saiu o resultado inesperado dos seus exames. Calígula estava em perfeita saúde, levando como moléstia em seu corpo, apenas uma unha encravada no dedão do pé esquerdo, uma costela fraturada mas já calcificada do tempo em que jogava bola, e um velho sinal no canto da boca do tempo de menino, quando tivera boqueira. Não possuindo nenhum sinal de câncer, investigou-se no laboratório de Mamona e concluiu-se que a funcionária novata havia trocado seus exames com os de um velhinho que morrera saudável no papel e corroído da próstata. Diante do acontecido, Calígula vestiu-se de gajo e embarcou clandestino para Portugal num navio do Loide e nunca mais pôs os pés em Mamona. O problema que deixou foi com relação às suas heranças cuja disputa continua entre seus sobrinhos, os testamentados e ele próprio.

 

08/07/2008.

 

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