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O ano da morte do sonho

Batista de Lima



O que se indaga ainda hoje é o porquê de 1968 ser um ano que permanece vivo e discutido, principalmente agora que vira quarentão. Nessas quatro décadas de sua resistência, esse ano culminante do século XX tem comprovado que o plantio no mundo dos sonhos é promessa de boa safra. 1968 foi a última grande colheita do roçado da esperança. A partir de então, começou um despencar cuja única salvação é se agarrar nos seus fios restantes, impregnados de delírio e êxtase, que nossa memória tenta guardar. As palavras chaves daquele momento, entre nós, eram liberdade, juventude, sonho, democratização, paz e amor. Os temas, lá de fora vindos, eram a Guerra do Vietnã, o assassinato de Martin Luther King e as barricadas de Paris. Por aqui o assunto também era a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto, no restaurante ´Calabouço´, no Rio de Janeiro, a Passeata dos 100 mil, a prisão de mais de mil estudantes no Congresso da UNE, em Ibiúna, e o fechamento da Faculdade de Filosofia da USP. 1968 foi o ano em que as minorias se deram as mãos e criaram força. Estudantes, operários, gays, mulheres, negros e outros excluídos se solidarizaram e criaram uma inclusão. O ambiente universitário entrou em processo de democratização, o que provocou em cada campus, o choque entre a elite conservadora e os reformistas. Um pouco antes, a morte de Che Guevara já apontava para uma encruzilhada onde o sonho e a realidade teriam que se digladiar, e as perspectivas eram de que a arrancada reformista de maio de 1968 fatalmente iria se chocar com o rolo opressor de uma contra-reforma que erguia suas sólidas trincheiras em todos os setores da sociedade. Foi preciso então procurar uma saída pelo oitão das artimanhas em crescimento. Cresceu o movimento da contracultura, do desbunde, dos grandes festivais, do famoso ´faça amor, não faça guerra´. Apesar de uns dizerem que 1968 está morto, verifica-se que aquele ano é feito fogo de monturo, não se apaga nunca, apenas tem momentos de pouco fogo e alguma fumaça. Prova disso, é que nas comemorações de seus quarenta anos toda uma revisão vem sendo feita em torno do que aconteceu naquele ano. Aquele momento apresentou uma juventude como sujeito do processo histórico na sua luta contra a mentalidade dominante. Esse fenômeno era detectado na música, na literatura e na moda. Cada jovem era um veículo de rebeldia por transportar em si próprio os signos da contracultura. Os cabelos longos, a barba por fazer e as roupas berrantes eram painéis de símbolos dessa revolução. 1968 foi um ano em que a juventude possuía seus ídolos, sua linguagem, seu ´modus vivendi´ à margem do que era institucional.A reação a tudo isso foi tão dura que a existência dos ídolos passou a fenecer a tal ponto que desembocou numa juventude recente, sem rumo, sem entusiasmo e enclausurada em nichos de sobrevida que os shoping center proporcionam. Espaços públicos como praças, ruas e parques se esvaziaram. O silêncio da juventude atual é sintoma de um pacifismo anêmico produzido pela ditadura das grifes e pelo sacolejar entre quatro paredes dos aparelhos das academias. Aquele ano de ruptura nos deixou lições de um socialismo jovem cujas bandeiras eram contrárias à guerra, ao consumismo, à família convencional e à moral sexista. Aflorou uma geração anti-racista, pacifista, libertária, ecologista e feminista. Aquele ano foi rico porque produziu sua narrativa e seus mártires. Suas cicatrizes foram tão profundas que continuam vertendo glórias aos que sucumbiram nas suas utopias. Foi pois um ano que não morreu e que sobrevive como inspiração para que se escreva a página branca do viver de hoje. Aquele marcante ano culminou com o esgotamenteo do modelo fordista. Entre operários e estudantes houve uma aproximação nunca detectada anteriormente, e dessa aproximação surgiu a conclusão de que o ideal não era a acumulação de bens. Que a felicidade estava muito mais no despojamento do que no desfrute incontrolável dos bens de consumo. O pé na estrada era muito mais atraente do que a casa própria com geladeira e televisão. Foi um momento tão festivamente romântico que os festejos em torno do seu aniversário são muito mais uma disputa pelo que restou de seu espólio. Nessa disputa, infeliz daquele que não tem uma cicatriz a mostrar, porque o discurso que impera é aquele entremeado de experiências pessoais. Se se perguntar qual o setor social que mais foi afetado pelos movimentos de 1968, não se tem dúvida que foi o ambiente universitário. Houve uma democratização das universidades. Entre nós, no entanto, essa democratização que houve lá fora não vingou por aqui, dado o endurecimento do regime militar de que éramos vítimas. A transformação do sistema seriado em sistema de créditos que passou a vigorar no ensino universitário foi uma armadilha em que os estudantes caíram. Enquanto se prensava que o novo sistema democratizava nosso acesso a qualquer semestre do curso, por outro lado a turma permanente que existia anteriormente era esfacelada em detrimento do surgimento e manutenção de lideranças estudantis. Esse período também foi marcado pela invasão de ´brazilianists´ que estudaram um Brasil que os brasileiros não haviam estudado. Esses estudos nos retornaram em brochuras e capas duras depois que nossas entranhas ficaram conhecidas lá fora. Essa grande construção que é o Brasil teve seus compartimentos mais íntimas vasculhadas pelos lá de fora sem pedido de licença. Apesar de tudo isso, tivermos nossos ídolos, nossos guias, alguém por aqui confiável: Celso Furtado, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes e Paulo Freire. Coisas bonitas se formaram: o tropicalismo, as comunidades eclesiais de base, as ligas camponesas e o teatro do oprimido. 1968 é memória. Discuti-lo é uma forma de resistência. Como foi um momento de transbordamento de esperança, deve ser lembrado como exemplo de como transformar o poder sem ter que dele se apossar. Foi um momento sublime porque a todo momento questionava a si próprio, desenhava o futuro com um pé no sonho e outro na realidade. Daí que esse futuro não era traçado sem risco. Fomos vítimas de imprecisões no nosso planejamento. Diferentemente do momento atual em que somos informação e não construímos narrativa, somos agora tão marketing, que nossa identidade fenece. Estamos em todo o mundo, e todo o mundo está aqui, o que nos leva a não estarmos em parte alguma. Os sobreviventes de 1968 são aqueles que gritaram nas ruas enquanto não lhes cortaram a voz. São aqueles que perguntam hoje, onde estão os jovens deste país. Uma juventude que não se queima, não ilumina. Estamos vivendo uma penumbra que teima em virar treva.

 

19/08/2008.

 

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