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Batista de Lima



A água é o princípio de todas as coisas. (Tales de Mileto)


O grande vilão da contaminação das águas surgiu com a Revolução Industrial. As indústrias trouxeram o progresso e a poluição. Por conta disso, 2,4 bilhões de pessoas, segundo a UNESCO, não têm saneamento básico, e a poluição não é mais uma questão de superfície, o lençol freático está se poluindo cada vez mais. É por isso que 6 mil crianças morrem por dia no mundo por questões de poluição das águas. Sabe-se que menos de 3% da água disponível no planeta é doce. O Brasil é privilegiado por possuir 12% das reservas de água doce do mundo. É bem verdade que a maior concentração dessas águas está na Amazônia. Mas para o futuro, será uma das fontes de riqueza do País. O nosso semiárido poderá se beneficiar com o manancial amazônico através da transposição daquele rio para o Nordeste. Mas essas águas precisam de uma gestão sustentável. A ANA, Agência Nacional das Águas, apregoa com razão que não se pode chegar ao objetivo da Fome Zero sem se passar pela Sede Zero. A falta de água é um dos problemas crônicos no Ceará, até hoje não resolvido. Muitas soluções já foram tentadas. Nossa fauna e nossa flora já foram extintas algumas vezes. Já trouxeram até camelos, da África, para servirem de animal de tração, no século XIX, e que faziam a linha entre Fortaleza e Baturité. Na seca de 1877, 78 e 79, 500 mil pessoas morreram no Ceará. Rodolfo Teófilo escreveu um livro, A fome, que documenta muito bem essa catástrofe. Só em um dia de dezembro 1878 morreram 1.200 pessoas em Fortaleza. Quem salvou Fortaleza foi o sanitarista Rodolfo Teófilo, convencendo as pessoas dos princípios básicos de higiene para a proteção da peste. A questão da água é também uma questão de educação. A água das biqueiras das casas chia quando cai porque está chorando por ser desprezada pelos moradores que a deixam ir embora. É preciso conter a água da chuva que vem benzer o telhado, em cisternas de placa. Uma cisterna de 16 mil litros abastece uma casa de família de cinco pessoas por um período de oito meses. A Cáritas, que é ligada à Igreja Católica, vem há anos construindo essas cisternas. Além das cisternas, também é necessário evitar os desmatamentos e as queimadas. Agricultores de nossa região estão se transformando em pecuaristas, criando roças de capim, após a broca, a queimada e o arrancamento de tocos. É o começo da desertificação. A Literatura Popular do Nordeste tem trabalhado mais com a escassez da água do que com o excesso. A seca tem sido mais inspiradora. Exemplo é ´A triste partida´, de Patativa do Assaré. É o hino do pau-de-arara, do retirante. Hino que serve também para o candango e para o arigó. O rio é um signo. O rio é prenhe de mensagens. Primeiro pela água, que ao lado da terra, do fogo e do ar, faz parte do quarteto de arquéticos interpretativos da natureza. Depois pela sua dinâmica interligadora de variados contextos. Dizem alguns críticos que o bom intelectual precisa da presença de água para ser inspirado. Que seja o mar, um lago, uma lagoa, um rio, um riacho, um córrego, ou até mesmo uma cacimba. A boa literatura está impregnada de água ou da falta dela, como fizeram os romancistas da seca no Nordeste: Rodolfo Teófilo, com A fome; Oliveira Paiva, com Dona Guidinha do Poço; Domingos Olímpio, com Luzia Homem; Raquel de Queiroz, com O quinze; Graciliano Ramos, com Vidas Secas; etc. Guimarães Rosa nos avisou que a travessia é a terceira margem; Fernado Pessoa preveniu que navegar é preciso; Santiago, o velho lobo-do-mar, de Ernest Hemingway, é o mais visceral exemplo de tenacidade, paciência e persistência; Ulisses, na Odisséia homérica, soçobra em águas furiosas; Camões em os Lusíadas singrou por mares nunca dantes navegados, desafiando tempestades e tormentas para aproximar culturas distintas. Camões deixou morrer sua amada para salvar os manuscritos de Os Lusíadas, em um naufrágio. Machado de Assis também é ligado às águas. O texto do Dom Casmurro possui, entre as muitas sugerências detectáveis, uma ligação tão íntima com as águas que dá a impressão ser urdido com fios líquidos. A ênfase maior está nas aproximações entre Capitu, com seus olhos de ressaca, e o mar. Outra fonte também de comprovação dessa metáfora do rio é a identificação de passagens bíblicas referentes ao Profeta Ezequiel onde as coincidências são tão aparentes com o itinerário de Escobar, que chegamos a concluir, ter Machado de Assis certo conhecimento do discurso de Ezequiel e do curso do rio Cobar presentes naquele texto. Comparando-se Escobar a um rio, seu curso normal leva-o a morrer no mar, a ser tragado pelo mar, no caso, Capitu. Há indícios de fluvialidade nos caracteres de Escobar. Já em Bentinho, os caracteres são de estagnação, solidão, como se um poço fosse. A estática é pois característica de Bentinho em oposição à dinâmica fluvialidade de Escobar e à voracidade também dinâmica e marítima de Capitu. É tanto que nos flagrantes do namoro, dados pelos pais de Capitu, Bentinho é estática pura, Capitu é fingimento dinâmico. Há um rio também em João Cabral de Melo Neto. O Capibaribe é o rio. O poeta é uma de suas estações. Dizem os biógrafos: João Cabral é um leitor sem nenhum curso universitário. Também, não precisou; ele fez o curso das bibliotecas enquanto fazia o curso da curiosidade e da vida, fez o curso do rio Capibaribe. O Capibaribe o acompanha e o marca com a liquidez itinerante de grandes cursos d´água. É sabido que os quatro elementos antropomórficos na sua poesia, são: a cana, o rio, a luz e o mar. São quatro elementos que se combinam: a cana invasora, agressiva, cortante; o rio lento, visguento, matando sua sede com a ´severinice´ da situação dos cassacos ribeirinhos; a luz nordestina e nordestinante; o ar, ou o alísio, ou a brisa do mar com o estilo dos coqueirais. Desses elementos, é o rio, o mais definitivo e o mais definidor. A água do rio como princípio e fim, cabeceira e foz, vida e morte, sincronia e diacronia, correnteza e poço, sintagma e paradigma, fundo e forma, conotação e denotação, significante e significado. Pois essa água, ou essa feição aqualina, vem marcante em quase toda sua obra. Outros autores brasileiros poderiam aqui ser mostrados com seus compromissos com a biodiversidade, principalmente em relação à metáfora da água: Manuel de Barros, Olga Savari, Vicente Carvalho e até José de Alencar com sua épica narrativa do Guarani. Não podemos esquecer Mário Quintana e seu livro Água, publicado um mês após sua morte, em 1994. São 12 poemas tendo a água como tema. Para tanto o poeta havia empreendido viagem de observação pelas margens do rio Paraguai, pelo Pantanal, o Cerrado, Blumenau, Foz do Iguaçu, Itaipu, Porto do Suape, no Nordeste e pela Ilha de Santa Catarina. Depois de tanto pesquisar o poeta concluiu: ´Quando a água desaparecer, que será do/ homem, que será das/ coisas, dos verdes e bichos?/ Que será de Deus?´

 

01/04/2008.

 

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As imagens de qualquer cortejo fúnebre por si sós são tristes. Não são apenas tristes, essas imagens, quando o morto não teve nenhuma proteção de um esquife ou de mortalha. São chocantes. Mas quando o morto, além de desprotegido, por duas horas, é transportado pelas ruas da cidade grande sobre uma carrocinha de lixo, puxada por um familiar quase morto também, não há adjetivo que qualifique. Não há palavra que traduza a crueza e a crueldade da cena. Aquela carroça improvisada era antes utilizada pelo morto para transportar o papel que era retirado do lixo. Transportava lixo. O lixo agora é um homem. É um cidadão que nasceu para ser feliz e que batalhou para conseguir essa felicidade mesmo tendo que extraí-la do fétido lixo que sobrou de seus circunstantes. É um homem que sonhou, que amou, deixou filhos e viu de perto o brilho incandescente de uma metrópole com todos os seus atrativos. Só não teve direito a esses bens que desfilaram aos seus olhos. Apenas farejou o sobejo, saboreou o pegado queimado desse panelão de consumo que lhe doou a borra do progresso. É um homem com todas os sentidos e metabolismos, daqueles outros que desfilam impávidos nos carros importados, ao seu lado. Explicações medram mas as justificativas não convencem. José Carlos Ferreira de Sousa é o catador catado. Tanto catou os restos do supérfluo que merecia outro destino que não fosse também ser considerado parte desse vômito da metrópole, que é o lixo. O enterro do catador foi secundado também pelo sepultamento de três anjinhos, dois antes e um depois. Isso sem contar outros anjinhos que lá de cima se derramaram em lágrimas na forma da chuva que despencou torrencial dos céus. Também estava presente a mãe do anjo de carne, entregando-o à outra mãe, a terra, seu filho querido. Se foi ou não um fim digno, o certo é que foi uma lição para todos nós que escamoteamos uma realidade que punge ao nosso redor. Nem o hospital quis ficar com o indigente como se o direito de ali permanecer fosse atrelado a alguma condição social de que José Carlos não era possuidor. A ´res publica´ ficou privativa das castas dos patrícios. Estamos talvez voltando a outras eras antigas, ou como previa aquele filósofo, o futuro da humanidade é entrar numa outra Idade Média e depois voltar aos poucos à era das cavernas. Será que já começamos esse retorno? Será que alcançamos o apogeu e estamos despencando para a decadência? De qualquer maneira a imagem é apocalíptica, é surreal como num filme do Bunuel, como numa tela de Dali. Não dá para entender a Via Sacra do catador. Passaram-se os dias e as mais inusitadas opiniões foram dadas sobre o episódio. Teve até quem divulgasse pela internet que em alguns momentos do cortejo, um carro de som da comunidade fez o seu discurso político em protesto pelo defunto e não deu proteção ao indigente. O certo é que parece que vão investigar as responsabilidades a partir da possibilidade de erro médico quando do atendimento no Frotinha de Messejana. O corpo do morto teve de ir ao Serviço de Verificação de Óbitos, que estava vivo. Será que não deveria ser o contrário? O Serviço de Verificação de Óbitos ir ao local onde estava o morto? Ou seja, a obrigação de mobilidade foi do que estava naturalmente imóvel, o morto. O morto precisou fazer uma via crucis para ter um sepultamento digno. O morto teve que se mobilizar para dizer que estava morto. Esquisito e inusitado esse comportamento dos órgãos responsáveis. Por isso que a cena teve repercussão até no exterior. Era um morto desfilando na rua para na sua fala de morto, dizer que havia morrido. Até o plano funerário que o pai pagava não funcionou para o filho. Antes do término do percurso fúnebre, os acompanhantes receberam a informação de que chegaria o transporte para o traslado. Acontece que eles não acreditaram na promessa e foram até o final da via sacra. Não acreditaram porque vivem num mundo de promessas não cumpridas. Perderam a fé nos homens porque eles não estão mais imbuídos de boa vontade. Já foram tão espezinhados por enganações que não querem mais se enganar. Imagine-se daqui até outubro, quando ocorrerão eleições para vereadores e prefeitos, quantas promessas vão ser feitas e deixadas de ser cumpridas. Na mesma página de jornal em que aparece a foto de José Carlos no trajeto de coroamento da sua tragédia, está anunciado um carro possante com três anos de garantia e catorze itens de sofisticação. Ou seja, o grande abismo social que se estabelece entre o catador e o sujador da cidade é que provoca esse tipo de desfecho. Talvez se estivéssemos em tempos mais remotos José Carlos teria tido direito ao caixão das almas que as paróquias dispunham para traslado de indigentes. Mas os tempos hoje são outros. Parece que as sofisticadas tecnologias de que dispomos possuem um poder de ofuscar nossos olhos e nossa sensibilidade a ponto de não enxergarmos o que punge a um palmo do nosso nariz. Todo esse episódio teve uma mensagem que reverbera, mesmo com o passar dos dias, naqueles que ainda avistam no mundo a linguagem desconcertante das diferenças. A morte do catador de lixo transformou-se em um signo cujo significado corroeu por dentro a insensibilidade humana. Sua fala necessitou chocar para ser ouvida. Foi necessário que perdesse a vida para que seu dizer criasse vida. Lembra, guardando as devidas proporções, aquele outro martírio daquele outro catador, no caso, catador de almas, que teve de se deixar crucificar para que sua mensagem ficasse sacralizada. Ou seja, o fato histórico não desaparece no tempo, ele se repete todo dia. Que José Carlos encontre algo melhor na nova dimensão em que se encontra.

 

25/03/2008.

 

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Batista de Lima



É difícil se falar em Manuel Bandeira sem que se repita algo que já foi dito por alguém extasiado com a consistência da sua poética. No entanto, numa obra poética como a sua, há sempre labirintos que continuam inexpugnáveis aos espíritos pertinazes. Um deles que continua quase que incólume ao crivo dos críticos, guarda o mistério da vastidão das dimensões espaciais da sua experiência de vida e de poesia. Assim sendo, procuraremos, em primeiro lugar, apontar os elementos que compõem de forma geral, a sua poesia no seu livro Estrela da vida inteira, Livraria José Olímpio, 1979, 7ª edição. Em seguida, daremos particular atenção ao contingente desse elementos que o poeta escolheu como seus espaços da vida inteira. Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (Recife, 1886; Rio de Janeiro, 1968) teve cedo na vida, o destino mudando o itinerário dos seus ideais. Teve que abandonar a vida de estudante que escolhera para sair pelo mundo a fora em busca da saúde que esse mesmo destino teimava em lhe tomar. Passou a conviver com esse ´demônio familiar´ materializado nos pulmões comprometidos. Só encontrou então uma melhor saída, amando essa desdita. Daí sua confissão no antológico poema ´Renúncia´, encaixado no primeiro livro A cinza das horas (Tip. do Jornal do Comércio, Rio 1917) ´... Procura / Curtir sem queixa o mal que te crucia / O mundo é sem piedade e até riria / Da tua inconsolável amargura´. / Só a dor enobrece e é grande e é pura. / Aprende a amá-la que a amarás um dia´. (Teresópolis, 1906) Tentando amar a dor, canalizou todo o seu talento em busca de uma expressão lírica do seu estado de alma, resultante do estado físico. Construiu então um monumento poético por toda a vida, em que a síntese, a elipse condensada e o controle cada vez maior do sentimentalismo que vai domando de livro para livro, formam um crescente edificar-se que não se encerra mais. Não se encerra mais, porque os elementos que o compõem são vastos; vastos, de uma vastidão que perlonga do ambiente físico que ocupou, ao que imaginou, para multiplicar-se nos ambientes que seus bons leitores edificam a partir do convívio com sua obra. Os elementos da sua poética são pois familiares de qualquer pessoa: a casa, o quarto, a cidade, a família, os namorados na rua, o beco, o café que prepara, a conversa com os amigos, a ama, os avós, a noite, a morte, etc. Desses elementos, os que mais nos importam aqui, são os espaciais. São os do repouso, do habitar. São aqueles onde a vida se alastra mesmo quando a dor é presente. E aqui caberia um lançar de olhos sobre o poeta existente em Bandeira, seu adequar-se ao mundo do progresso construtor desse ambiente. O poeta com sua noturnidade construindo seu mundo a partir do mundo diurno construído pelo cientista (o engenheiro). O poeta que luta com o mistério do momento seguinte. Que corre o risco da surpresa enquanto o cientista calcula seus próprios riscos. Bela então é a ocupação que Bandeira faz dos espaços. A cama é sua primeira dimensão espacial, bem como a casa, o beco, a rua, a cidade. A cama onde se nasce, e se ama, e se morre e se sonha. Principalmente se sonha com outras dimensões. ´O espaço é um milagre´ (Preparação para a morte). Mesmo em sua poética de catarse é possível averiguar situações de devaneio nos labirintos espaciais da casa. Pois bem, o construir outras dimensões, imaginando-se, a partir dos espaços físicos ocupados, é proporcionar a fenomenologia do ato poético. ´Vou-me embora para Pasárgada´. Pasárgada é fenomenológica. Lá o poeta consegue ser amigo do rei. Lá o poeta consegue a mulher que quiser na cama que escolher. Vem aí então a cama instaurada na subjetividade, destinada, no sonho do poeta, para as coisas do amor. O poeta salta com facilidade do mundo concreto de sua casa, de seu quarto, de sua cama, para um mundo imaginário e até sensual. Essa mudança do espaço físico para o imaginário é uma constante na obra de Manuel Bandeira. As dimensões do seu espaço físico, são dimensões do seu espaço imaginário. Mas também os compartimentos dessa criação, são compartimentos de sua alma. A alma humana é composta de vários compartimentos, como se uma casa fosse, de porão a sótão. E muito mais ainda, o que importa mesmo para a poesia é o que está abaixo do porão e acima do sótão. É só analisar as teorias das camadas (Jung) para se verificar que a cama no quarto é apenas um eixo físico de onde se irradiam em espirais, infinitas camas, quartos e casas. Daí se dizer que a poética de Manuel Bandeira não se encerra mais, porque ela vai se reproduzindo a cada leitura, re-leitura e re-escritura a que cada leitor a submete, tudo isto por conta da vastidão das suas dimensões que terão muitas e muitas Pasárgadas, estrelas e vidas inteiras a serem desvendadas.

 

18/03/2008.

 

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