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  • Foto do escritorBatista de Lima

A morte do catador de lixo

Batista de Lima



As imagens de qualquer cortejo fúnebre por si sós são tristes. Não são apenas tristes, essas imagens, quando o morto não teve nenhuma proteção de um esquife ou de mortalha. São chocantes. Mas quando o morto, além de desprotegido, por duas horas, é transportado pelas ruas da cidade grande sobre uma carrocinha de lixo, puxada por um familiar quase morto também, não há adjetivo que qualifique. Não há palavra que traduza a crueza e a crueldade da cena. Aquela carroça improvisada era antes utilizada pelo morto para transportar o papel que era retirado do lixo. Transportava lixo. O lixo agora é um homem. É um cidadão que nasceu para ser feliz e que batalhou para conseguir essa felicidade mesmo tendo que extraí-la do fétido lixo que sobrou de seus circunstantes. É um homem que sonhou, que amou, deixou filhos e viu de perto o brilho incandescente de uma metrópole com todos os seus atrativos. Só não teve direito a esses bens que desfilaram aos seus olhos. Apenas farejou o sobejo, saboreou o pegado queimado desse panelão de consumo que lhe doou a borra do progresso. É um homem com todas os sentidos e metabolismos, daqueles outros que desfilam impávidos nos carros importados, ao seu lado. Explicações medram mas as justificativas não convencem. José Carlos Ferreira de Sousa é o catador catado. Tanto catou os restos do supérfluo que merecia outro destino que não fosse também ser considerado parte desse vômito da metrópole, que é o lixo. O enterro do catador foi secundado também pelo sepultamento de três anjinhos, dois antes e um depois. Isso sem contar outros anjinhos que lá de cima se derramaram em lágrimas na forma da chuva que despencou torrencial dos céus. Também estava presente a mãe do anjo de carne, entregando-o à outra mãe, a terra, seu filho querido. Se foi ou não um fim digno, o certo é que foi uma lição para todos nós que escamoteamos uma realidade que punge ao nosso redor. Nem o hospital quis ficar com o indigente como se o direito de ali permanecer fosse atrelado a alguma condição social de que José Carlos não era possuidor. A ´res publica´ ficou privativa das castas dos patrícios. Estamos talvez voltando a outras eras antigas, ou como previa aquele filósofo, o futuro da humanidade é entrar numa outra Idade Média e depois voltar aos poucos à era das cavernas. Será que já começamos esse retorno? Será que alcançamos o apogeu e estamos despencando para a decadência? De qualquer maneira a imagem é apocalíptica, é surreal como num filme do Bunuel, como numa tela de Dali. Não dá para entender a Via Sacra do catador. Passaram-se os dias e as mais inusitadas opiniões foram dadas sobre o episódio. Teve até quem divulgasse pela internet que em alguns momentos do cortejo, um carro de som da comunidade fez o seu discurso político em protesto pelo defunto e não deu proteção ao indigente. O certo é que parece que vão investigar as responsabilidades a partir da possibilidade de erro médico quando do atendimento no Frotinha de Messejana. O corpo do morto teve de ir ao Serviço de Verificação de Óbitos, que estava vivo. Será que não deveria ser o contrário? O Serviço de Verificação de Óbitos ir ao local onde estava o morto? Ou seja, a obrigação de mobilidade foi do que estava naturalmente imóvel, o morto. O morto precisou fazer uma via crucis para ter um sepultamento digno. O morto teve que se mobilizar para dizer que estava morto. Esquisito e inusitado esse comportamento dos órgãos responsáveis. Por isso que a cena teve repercussão até no exterior. Era um morto desfilando na rua para na sua fala de morto, dizer que havia morrido. Até o plano funerário que o pai pagava não funcionou para o filho. Antes do término do percurso fúnebre, os acompanhantes receberam a informação de que chegaria o transporte para o traslado. Acontece que eles não acreditaram na promessa e foram até o final da via sacra. Não acreditaram porque vivem num mundo de promessas não cumpridas. Perderam a fé nos homens porque eles não estão mais imbuídos de boa vontade. Já foram tão espezinhados por enganações que não querem mais se enganar. Imagine-se daqui até outubro, quando ocorrerão eleições para vereadores e prefeitos, quantas promessas vão ser feitas e deixadas de ser cumpridas. Na mesma página de jornal em que aparece a foto de José Carlos no trajeto de coroamento da sua tragédia, está anunciado um carro possante com três anos de garantia e catorze itens de sofisticação. Ou seja, o grande abismo social que se estabelece entre o catador e o sujador da cidade é que provoca esse tipo de desfecho. Talvez se estivéssemos em tempos mais remotos José Carlos teria tido direito ao caixão das almas que as paróquias dispunham para traslado de indigentes. Mas os tempos hoje são outros. Parece que as sofisticadas tecnologias de que dispomos possuem um poder de ofuscar nossos olhos e nossa sensibilidade a ponto de não enxergarmos o que punge a um palmo do nosso nariz. Todo esse episódio teve uma mensagem que reverbera, mesmo com o passar dos dias, naqueles que ainda avistam no mundo a linguagem desconcertante das diferenças. A morte do catador de lixo transformou-se em um signo cujo significado corroeu por dentro a insensibilidade humana. Sua fala necessitou chocar para ser ouvida. Foi necessário que perdesse a vida para que seu dizer criasse vida. Lembra, guardando as devidas proporções, aquele outro martírio daquele outro catador, no caso, catador de almas, que teve de se deixar crucificar para que sua mensagem ficasse sacralizada. Ou seja, o fato histórico não desaparece no tempo, ele se repete todo dia. Que José Carlos encontre algo melhor na nova dimensão em que se encontra.

 

25/03/2008.

 

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