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Batista de Lima





A oitava bienal do livro chegou ao final, em Fortaleza, no último dia 21, e algumas conclusões se cristalizam após esses dezesseis anos dessa promoção. Delas, a mais curiosa brota exatamente em torno da Literatura de Cordel. Essa literatura está viva e pujante.

O Pavilhão do Cordel foi um dos mais frequentados. Seus produtos estavam entre os mais vendidos. Havia um ecletismo formal que o envolvia e superava tudo o mais na feira. As publicações eram as menos onerosas para o bolso do comprador. O Cordel mais caro é vendido a dois reais. E o melhor, o autor estava ali, presente, permanentemente, empunhando sua criação, discutindo com o visitante, as vantagens de ser cordelista, suas vicissitudes e a odisseia que promove nas mais diferentes paragens, veiculando seus trabalhos. Ali estavam, principalmente para discutir com o comprador, a qualidade de sua produção. Muitos estavam ali para dizer que vivem de cordel, caso raro entre nós, fazedores de outras literaturas, que precisamos de outro emprego no mercado de trabalho, para a sobrevivência.

Nessa mais recente Bienal, no nosso Centro de Convenções, um pavilhão inteiro estava dedicado ao cordel. O irrequieto Klévisson Viana, apesar de ser o mais jovem dos expositores, foi o organizador e coordenador dos cordelistas que ali fizeram ponto. E todos que expuseram, fizeram boas vendas.

Jotabê, com 96 títulos expostos, veio lá de Viçosa do Ceará e vendeu 300 exemplares. Chico Salvino, de Acopiara, com 40 títulos já produzidos, vendeu na feira em torno de 150 exemplares. Klévisson Viana é um caso à parte. Itinerante pela feira, proferiu palestras, deu entrevistas, negociou e fez contratos, deixando sua mulher Dulce encarregada de sua banca com 300 títulos expostos, de 30 autores diferentes, sendo que sua produção já alcança a casa dos 120 títulos. Tendo vendido 500 exemplares, Klévisson é um fenômeno entre os cordelistas. Compõe, ilustra, divulga, adapta obras clássicas para todos os públicos. Produz cordel em quadrinhos e adapta para essa poesia popular, clássicos como Dom Quixote, Os miseráveis e o Corcunda de Notre Dame, todos pela editora Nova Alexandria, de São Paulo. Sua preocupação em produzir cartilhas de cordel ilustrado, para crianças, é um investimento para o futuro, em torno dessa literatura que há quase dois séculos permanece viva em nosso Nordeste como sua crônica de maior alcance popular.

Klévisson Viana já esteve, com sua literatura, na França e no México, onde testemunhei seu trabalho, e ajudei a transportar aquelas três malas enormes de folhetos, que voltaram secas, porque o poeta é também um grande vendedor de cordel. Seu cordel “Romance da quenga que matou o delegado” foi adaptado pela Rede Globo, no seu seriado Brava Gente, com enorme sucesso. Foi ele quem organizou todo o espaço do cordel nessa última Bienal, de tal forma que era possível se conversar com os poetas e assistir às apresentações dos cordelistas e violeiros. Ali se apresentaram poetas locais e de outros Estados com seus repentes. Foram empolgantes as apresentações de João Firmino, de Sergipe; o improviso de Bule Bule, de Salvador; de Azulão, do Rio de Janeiro; de Geraldo Amâncio e Zé Maria, de Fortaleza.

O pavilhão do Cordel tornou-se um espaço de confraternização de poetas populares. Mesmo assim, Izaías Gomes de Assis, vindo de Natal, e com sua banca de cordéis, declarava que a Bienal anterior havia sido melhor e colocava a culpa na crise financeira que prorrompeu lá em Wall Street, que coisa! Outros que também expuseram seus trabalhos foram Arievaldo Viana, irmão de Klévisson e Marco Haurélio, baiano de Riacho de Santana e coordenador da coleção “Clássicos no Cordel”, da Editora Nova Alexandria.

Ao final de um passeio por todas as bancas de cordel é salutar um bate-papo com Rouxinol do Rinaré. Cordelista, pai de família com três filhos, vive de literatura de cordel. Orgulha-se de sua filha Julie Ane Oliveira, que, com apenas 16 anos, fez um cordel com a história de Branca de Neve, que devidamente ilustrada, foi aplicada para estudantes de educação infantil dos 184 municípios cearenses. Julie sempre foi e continua sendo aluna de escola pública e hoje se revela a mais jovem manifestação do cordel. Seu pai, Rouxinol do Rinaré, já produziu e publicou 64 cordéis e disputou com Klévisson a hegemonia do maior vendedor de cordel dessa VIII Bienal. Natural de Quixadá, esse poeta tão Rinaré (Rio) quanto Rouxinol (pássaro) já peregrinou por esse Brasil todo com suas malas nas costas e conclui que as melhores feiras para cordel são as de Brasília e São Luiz. E que no Ceará, é Limoeiro do Norte onde mais se compra cordel. Juazeiro do Norte não é mais o mercado que era na época de Manuel Bernardo da Silva e dos anos gloriosos da tipografia São Francisco.

O Pavilhão do Cordel, nessas feiras, é um espaço onde o Nordeste lateja. Pulsa ali o estro do homem do sertão, com seus mitos, suas epopeias feitas de suor, sangue e lágrimas, em torno da resistência de aqui nascer e aqui viver. Os heróis populares são cantados e imortalizados através da crônica mais popular do nosso povo, o cordel. Engana-se pois quem pensa ou pensou na morte dessa literatura que é a mais popular. As modernas tecnologias não conseguiram abafar o ímpeto com que brota essa poesia até nos mais recônditos rincões dos nossos confins.


02/12/2008.




 


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Batista de Lima





A grande vítima da Reforma Ortográfica é o trema. Nascido, segundo o tabelião das palavras, Antônio Houaiss, por volta de 1858, estaria, portanto, completando agora 150 anos. Isso no Português do Brasil, porque no de Portugal, sua condenação à morte já ocorrera em 1946. Essa coisa de ter um Português de Portugal e um Português do Brasil é um dos motivos para reformar a Língua e acabar essa distância caravelar. Estamos na época online e o Brasil é o passageiro mais beneficiado nesse navegar que é preciso.


É patente a necessidade da Reforma. A língua, no seu aspecto diacrônico, é uma evolução. Ela se reveste de novidades necessárias à evolução dos tempos e acumula outras, aposentando-as. O trema, no entanto, estaria exatamente comemorando agora seu sesquicentenário não fora essa guilhotina sobre seu pescoço em 31 de dezembro próximo. Essa morte anunciada é uma judiação com esse sinal que em toda sua existência apenas promoveu o “u”. Deu voz a essa letra em muitas ocasiões, tirando-a das garras do perigoso hífen.


Cada vez que o trema se deitava sobre o “u”, ele engravidava de som, ficava um “u” emancipado, prenhe de poder na voz. Agora não, o “u” vai ficar viúvo, com uma vida dupla, ora falando grosso ora falando fino e o trema vai ser sepultado após dois anos de velório.


Em toda Reforma Ortográfica, foi o único sinal condenado à total extinção. Até o acento diferencial ainda vai permanecer em, pelo menos, duas palavras: “pôde” e “pôr”. E o pior é que há sinais malandros, como esse tal de ponto e vírgula que nunca se definiu se é ponto ou se é vírgula e sai por aí travestido de hermafrodita, dando dor de cabeça nos escribas. Eu, particularmente, evito contato com esse sujeito, porque em muitas ocasiões não sei qual é a dele, ou qual é a dela. Já encurtei muitas frases para não passar pelo ponto e vírgula. Já fiz atalhos para evitá-lo. Mas não, ele continua vivo, intocável, majestoso e desafiador, agregado à pontuação e à minha ojeriza.


Outra coisinha chata, pentelha, que azucrina escrevinhadores é esse tal de hífen. Parece que a Reforma fê-lo mais feio. Mas está por aí esbanjando saúde na sua arte de separar. Sua triste função é separar, dividir. Parece até que a arte de separar é mais valorizada que a de juntar. O trabalho do hífen tem sido a pregação de divórcios e desquites entre dois termos que se querem casados. Que maldade! Mas ele continua firme e forte na sua sanha destruidora de uniões.


Na mesma linha do hífen e do ponto e vírgula está o dissimulado apóstrofo. Com sua vetusta existência de quase meio milênio, continua impávido e ninguém mexe com ele. Só mexem em definitivo com o coitado do trema. Mas não seja por isso, vamos venerar sempre esse “cosme-e-damião” condenado mesmo sendo inocente. Já chegam notícias de que, em Minas, uma confraria de preservação da memória do trema está sendo fundada. Dizem que vai ter sede própria e estátua de cera. Há, no entanto, já algumas reações das feministas porque a confraria é só de homens. Só confrades se inscreveram, não há confreiras em seus quadros. É preciso verificar se essa discriminação consta nos estatutos. Mas uma coisa é certa, há alguns membros que defendem a ideia de que o trema é símbolo do macho e que aqueles dois pontinhos arredondados simbolizam os testículos e são testemunhos de sua relação com o “u”, numa cópula necessária para a produção de um som que a sua solteirice no claustro do hífen não permite.


É imperioso que essas incongruências linguísticas sejam extirpadas da língua, não resta dúvida. É preciso, no entanto, cuidado com os critérios. A cedilha, por exemplo, é algo intocável entre nós, quando sabemos que o próprio Espanhol, de onde a importamos, já a extinguiu. Por isso que aquela língua é tida como a mais moderna, hoje falada e escrita. Por que não se retira de vez a cedilha dessa humilhação centenária de ficar debaixo do “c”, com medo do “ss” ou do “k”? A cedilha já foi tão humilhada nessa sua vida subterrânea que não faria questão de ser eliminada de vez. É exatamente uma posição contrária a do trema, que sempre esteve por cima, de forma ativa. A cedilha além de passiva consegue esmaecer a fortaleza do “c”. Enquanto o trema revigora o “u”, a cedilha enfraquece o “c”, mas continua na dela, escondidinha ali por baixo, quebrando cabeça de quem escreve.


Por fim, quero patentear minha tristeza pela execução do trema. Não só pela amizade que sempre cultivamos, mas pela inocência que sempre transmitiu e pelo bem que fazia. Mesmo estando sempre por cima, nunca humilhou ninguém. E, agora, nessa sua partida definitiva, só me resta lacriamoroso lhe pedir perdão e lhe dizer adeus.



28/10/2008.






 





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