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  • Foto do escritorBatista de Lima

Último dia de Niceto


Batista de Lima



Nós fomos todos ao velório de Aniceto Cruz. Nós todos éramos poucos. Muitos eram os nossos cuidados. Não acreditávamos na morte daquele gigante em forma de pessoa. Podia estar vivo e nos receber a bala. Era costume dele atirar para cima como forma de intimidar quem cruzava seu terreiro. Até o gado do curral vivia em sobressalto. E os cachorros "rompe nuvem" e "rompe ferro" fugiam com a sua presença no alpendre. Sua pisada forte, com riúnas 45, estremecia o chão e espantava os galos.

Chegamos terrosos ao alpendre de Aniceto, com os mesmos gestos de com ele em vida. Não acreditávamos que a morte podia vencê-lo. Ele matava onça a faca, derrubava touro no murro e tangia o trovão para o outro lado do arco-ires. Só se amanteigava todo, quando diante da pequena Zefinha, com quem fugira num bom inverno. Foi amor inscrito no para sempre. E não adiantou a revolta dos oito irmãos machos que Zefinha pendurava na fileira, ela que mais velha sempre fora, mandona e feia.

Mas Niceto estava ali tão simples que nem me lembrei do Cruz. Estava tão arenoso que desertificava a sala. Estava translúcido de pequenês. Nem os olhos conseguia abrir. Estava morto de mesmo, com uma mosca teimosa farejando-lhe a inutilidade do nariz. Tão morto estava que ninguém chorava. Era uma sentinela sem sentimento, desanimada. Nada lhe obedecia naquele momento, que para ele nem momento era mais. Ninguém perguntava como fora sua morte. Era algo tão necessário e demorado que o alívio agora reinante não permitia perguntas.

Niceto estava tão morto que o gato pulou pela janela e veio reinar na sala. Os cachorros entraram pela porta e vieram conferir a liberdade de estar na sala a qualquer hora. E a noite se esqueceu de passar, pois o tempo parou para festejar tão agradável fato, a morte de Niceto. Naquele momento, momentos outros lhe vieram buscar de volta. Queriam desfazer arruaças de baraço e cutelo em feiras e vaquejadas. Seu quicé de picar fumo e a lambedeira de cabo de embuá jaziam inertes sobre a mesa observante. Tudo estava ali tangendo Niceto para as terras do nada ser.

Niceto nulo estava ali com os braços em "x" sobre a cruz do peito. Piolhos em fuga galgavam o lençol branco em busca de outras cabeças de sangue vivo. Muitas boiadas, que sangradas foram, ali voltavam lhe cantando alvíssaras. Cada cristão que ele matara a faca ali chegava, pedindo mais morte para o pouco que a morte lhe fora. Havia um clamor para Niceto se recriar para morrer cem vezes. Quem ali estava não lhe fora dizer adeus, mas lhe trazer de volta para outras dores tantas inscritas no seu percurso. Dali para a frente ele teria todas as terras e todo o tempo do mundo para comerem-no pela boca, pelos olhos e orifícios, mas era pouco.

Dona Zefa Tanajura estava ali na cabeceira lhe pedindo de volta dois filhos que ele mandara para os reinos do sem retorno. Niceto Cruz precisava envivecer para pagar com juros as dívidas de ponta de faca. Não era possível que alguém tão mau morresse de morte morrida, mas foi assim que se deu. Chamaram então o Padre Bento que lhe benzeu os pés e com cara de gastura deu de costas para o morto. Só às três da tarde havia gente de coragem para levar o corpo do morto para o Campo Santo, o que todos achavam ser sacrilégio alguém tão pecador ser enterrado no meio dos justos ali residentes. Mas foi enterrado entre goles de aguardente por quatro de seus comparsas de crime.

Após o enterro de Aniceto, gentes que foram ou não foram para seu último contato, foram beber o morto na bodega de Januário, que vendia mais palavras do que coisas de garrafa. Entre histórias de valentia e doses grandes de Fubuia, alguém sugeriu arrancar aquele morto das entranhas do cemitério para esfaqueá-lo sem dó. Era preciso matar o morto de morte bem nutrida com a mesma faca que um dia ele feriu Gerôncio Torres. Era preciso também arma de fogo, de preferência seu trinta e oito, para atingi-lo na testa como ele fizera ano passado com a filha de Jovilina que não quis ceder-se para ele. Era preciso castrá-lo a macete como ele fez em Pesqueira com um tocador de fole que não sabia tocar tango.

Já rompia a madrugada, quando sete homens armados, cambaleando de beber o morto, armados de valentia, resolveram matar o morto. Armados de picaretas, chibancas, enxadas e pás, foram em busca da nova morada em que Niceto Cruz morava a sete palmos de terra. Era preciso matar o morto de todas as mortes matadas que ele efetuara nos antes. Que cada um dos sete homens praticasse por completo cada um tipo de morte que o morto em vida fizera. Eram tantos crimes conhecidos, fora aqueles não revelados, que cada um dos justiceiros teria de matar mais de uma vez o fascínora que a terra inocente não podia recebê-lo. Quando chegaram à beira da cova, todos tiveram assombro, o corpo do pecador Aniceto Cruz não jazia no local. Ainda hoje dizem por lá que a terra vomitou seu corpo no inferno, já que alma ele nunca tinha tido.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 28/06/2016.


 

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