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Últimas palavras

Batista de Lima



Enquanto você dormia, fui olhar o sol nascer e o convidei para as últimas palavras. Era terça, o mesmo dia em que nasci, e você não sabia. Ninguém sabia que as últimas palavras poderão ser as primeiras. Aluvião. Sempre achei que tudo é um aluvião. Mas ninguém sabe que as palavras vertem leite, certos dias, noutros mirram. Mirradas são as horas sem palavras, quando as coisas surgem. E a gente conduz aos ombros o bagaço do que sugamos. A cada dia nosso feixe cresce. E as palavras não suportam peso. No entanto pobre é quem não pesa, quem não arrasta o planeta ao qual se prende. Quando completei os últimos anos já era pedreira. Aí me deixei povoar por coqueiros e mocós. Um riacho me transpunha sem me conhecer e você regava orquídeas nos meus cabelos. Certa noite um tigre de bengala me chorou três horas. E suas lágrimas se transformaram em verbos. Eram palavras me ressuscitando. Notei que tudo era armadilha sua para o meu resgate. Estava ali perdido entre fios de resgate. Eram frases me mostrando a volta. Uma ladainha inteira me trazia à sala. Os carneiros nem suspeitavam do meu retorno. Apenas sentiram a amargura de minhas palavras lhes vergastando a pele. Nunca imaginei no meu tempo inútil como são úteis as palavras. Elas enforcam e ressuscitam. Elas deformam e constroem. Nunca pensei que eu fosse tão torturado pelas palavras, para me purificar. Foram necessárias muitas lições de sol e de luar para que entendesse que sou feito de palavras. Que sou um verbo muito antes e bem depois de verme ser. Foi preciso muito amar para ver que o amor é também uma construção verbal. Que o corpo é também feito de pontos de interrogação, e que essas interrogações são espirros que vêm da alma. São suspiros de um eterno que me enterra. Nunca imaginei que pudesse ir tão longe, apenas navegando palavras. Já sei agora que nunca vou parar de ser corrente, feito rio que não seca, enquanto montar palavras nessa minha jornada. Posso até desmontar da garupa das frases, elas, no entanto, continuarão comigo às costas. Não há nascer do sol que não seja meu renascer. Ele sempre me diz que minhas últimas palavras foram e serão as primeiras. Ele sempre diz que é até bom que você durma porque durante seu sono posso contar também com suas palavras que também não são as últimas porque nunca foram as primeiras. Certo dia procurei meus ancestrais e encontrei frases derramadas pelos caminhos. Eram elas que traziam todo um passado de volta. Notei que tudo o que passou está amordaçado no que foi escrito. Por isso que nos escravizamos à frase, ao seu poder incontestável. Vou pois por no papel minha verdade, mas antes vou ter que me submeter à sintaxe. Isso prova que jamais serei livre e que quanto mais digo mais mendigo, no entanto, se me calo, não existo. Meu avô era soturno. Falava pouco e nada escrevia. Virou apenas fotografia que amarela de medo a cada dia, na parede esquecida da casa velha. Não sabia ele que a verdadeira casa se constrói com sangue e suor, mas alicerçada em palavras. Deixou poucas palavras: dois açudes que deram para secar, um engenho que cansou de moagens e alguns filhos que voaram. O resto são caminhos que vão se apagando, coisas que se dissolvem e um vazio imenso que aumenta por falta de palavras. Enquanto você dormia fui perguntar ao sol, onde anda aquela multidão que desfilou nas minhas retinas e se afastou com o tempo. O que ele me respondeu foi que procurasse nas palavras que foram deixadas. Elas nos trazem impressas as pulsações de cada um. Como nada ficou escrito, nada foi encontrado, a não ser a pulsação do meu próprio coração, que tenho certeza tem o mesmo ritmo de todos que me antecederam. Quando procurei nos bolsos algumas respostas para minhas indagações, encontrei um grito prestes a explodir, uma súplica de dor e de ternura querendo virar palavra. Eram sentimentos se envergonhando de nudez e gritando por agasalhos verbais. Assim sendo, vou vestindo de verbos aquilo que sinto. Vou cobrindo de frases o que meus olhos desnudam. Só assim, dirão um dia, que existi, porque cravei a tempo, com vogais e consoantes essa corrente que me arrasta não sei para onde. Minha primeira função/ foi ouvir palavras/ batidas do coração/ A segunda função/ foi tecer palavras/ raízes no chão/ A terceira função/ foi aprender o calar/ como repetir da fala/ Destas e doutras funções/ uma se me fez difícil/ a de palavras polir.

 

19/02/2008.

 

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