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  • Foto do escritorBatista de Lima

Última escrava de Marica Lessa

Batista de Lima


Foi lendo “Judeus no Ceará (Séculos XIX e XX)”, de Nilton Melo Almeida, que encontrei curiosa passagem. Na página 74, está escrito: “Em 1867, além da compra de nove escravos, Jacó Cahn, como administrador de sua filha menor Carolina, dessa vez, é quem vende. Em quatro de abril, por setecentos e vinte mil réis, ele passa a escrava Ana, de propriedade de Carolina, natural do Ceará, cabra, trinta e oito anos, solteira e sem ofício, para uma tal Maria Francisca de Paula Lessa que cumpria sentença na cadeia de Fortaleza”. Dito isso, nada mais acrescenta sobre essa prisioneira e essa escrava Ana.

Essa Maria Francisca de Paula Lessa já estava presa havia onze anos, condenada como mandante do assassinato do marido, o coronel Domingos Vítor de Abreu Vasconcelos, em 1855, em Quixeramobim. Essa senhora, rica proprietária de terras, era conhecida como Marica Lessa e, depois de bastante tempo casada, foi se apaixonar por um sobrinho do marido, que viera de Pernambuco pedir proteção ao tio, depois de praticar crime naquele estado. Marica Lessa, que havia nascido em 1804, morreu como indigente em Fortaleza, em 1887.

Condenada a vinte anos de prisão, Marica apelou para redução da pena. Contava ela com os melhores advogados da época: Heráclito Graça, Meton de Alencar e Benedito Marques da Silva Acauã. O resultado da apelação foi contrário ao seu desejo, pois o juiz aplicou-lhe mais dez anos de prisão. Toda sua riqueza foi gasta com a justiça, e, quando nada mais possuía e já apresentava sinais de demência, foi solta para vagar pelas ruas de Fortaleza.

Gustavo Barroso, no seu livro “Coração de Menino”, afirma que, em companhia de outros garotos, corria pelas ruas do Centro, em Fortaleza, gritando xingamentos contra aquela velha suja e esfarrapada. Marica respondia com impropérios e às vezes atirando pedras nos meninos. O memorialista Gustavo Barroso nos leva à conclusão de que aquela velha senhora das ruas era a mulher cuja saga criminosa serviu de base para Oliveira Paiva escrever seu famoso romance “Dona Guidinha do Poço”.

Oliveira Paiva nunca viu esse seu livro publicado. Havia deixado os originais com a esposa, quando morreu aos 31 anos. Antônio Sales conseguiu copiar os originais e passá-los a Américo Facó, no Rio de Janeiro, que por sua vez, sessenta anos após a morte do autor, passou todo o material às mãos da professora e crítica literária Lúcia Miguel Pereira que o publicou, e foi sucesso de público e crítica. Muito já foi escrito sobre Guidinha, a Marica, mas nada aparece sobre a escrava Ana descoberta por Nilton Almeida.

Em 1963, o escritor e historiador Ismael Andrade Pordeus escreveu um ensaio com o título “À margem de Dona Guidinha do Poço”, em que apresenta a versão real do romance de Oliveira Paiva. Baseado nos autos do processo, ele comprova que Guidinha do Poço é Marica Lessa, a famosa fazendeira Maria Francisca de Paula Lessa, rica e proprietária de muitos escravos, mas que depois de presa teve que comprar a cativa Ana para cuidar dela na prisão. Não era encontrável notícia dessa escrava antes da pesquisa de Nilto Almeida, nem do costume de prisioneiros contarem com escravo para ajuda na prisão.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 11/06/19.


 

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