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Zumba

Batista de Lima


Ele nascera ali, nas fraldas da verde serra. Seu olhar perscrutador viajava os metros que separavam a ladeira da lagoa. Em vez de subir ao alto da chapada, preferia banhar-se com a serra, nas águas preguiçosas ali paradas. Vivia assim, entre o pouco e o quase nada que era tudo. Nas manhãs, nascia e se espreguiçava como os poucos bichos do terreiro. Arrepiava-se todo quando os primeiros raios do sol lhe vestiam o corpo quase nu. Vestia-se de brisa e escalava a manhã para enfrentar a tarde. Era uma vidinha quase nada, dessas que uma lufada maior de vento pode apagar, como vela em procissão.

Tudo ia assim em rumo da grande noite, sem nada para significar. Tudo ia parando quando ela invadiu sua vida. Ouviu alguma coisa fabricada, coisa inventada para além do seu diminuto pensar. Foi um sobrosso para sua paciência aquele som que desvirginou suas oiças e entrou de cabeça a dentro como um relâmpago petrificado, montado em um trovão de estalo. Foi uma procela que lhe inundou a vida nada. Tentou gritar mas o que lhe saiu da boca foi um arremedo do que lhe tinha invadido. Estava possuído pela palavra. Estava contaminado por um ser que já se reproduzia no seu por dentro como tapurus infernais.

As coisas começaram a lhe chegar aos turbilhões através de seus gemidos, de seus cantos e de seus encantos. O mundo todo se mostrou sonoroso de uma música que lhe enfiavam na mente. Cada coisa tinha seu grito, seu canto e lamento. Cada coisa se jogava nos seus braços, mesmo ficando onde estava. Era como se cada um virasse dois. Era um que ficava e outro que vinha lhe fazer mesuras. Achou aquilo tão ferozmente inovador e impuro que ficou com medo de ter que carregar nos costados, todas as coisas do mundo que lhe cercava e de outros que se lhe ofereciam.

Foi assim que ele entendeu porque era Zumba. Era o zumbido daquilo tudo invadindo suas percepções. Tudo passou a ter duas vidas. Era uma coisa que ficava estática e outra que dela saía para fazer festa nos seus sentidos. Tudo que pegava, pulava de dentro uma alma que antes fora silêncio. Alguém lhe disse ser palavra aquele milagre. Alguém lhe disse com palavra, o que era palavra. Isso foi o que o deixou mais achatado com o peso do mundo. Era lhe chegando nome até de coisa que ele não via, de coisa que não era coisa. Era como se fosse nome de palavra ou palavra de palavra.

Um rumoroso caso de amor começou a se instalar entre ele e a palavra. Mas havia palavra para tudo, e era difícil conservar aqueles nomes todos numa cabeça só. Foi por isso que alguém lhe indicou uma saída para que as palavras entrassem de vez na sua vida. Era preciso cravar cada uma em algum local para que engaioladas, elas não pudessem fugir. Foi então um aprendizado longo e cansativo colocar sinais por aí como prisão de coisas. E o pior é que cada coisa tinha sua gaiola própria. Mas ele não desistiu até conseguir, além de dizer, desenhar aqueles nomes de cada coisa. Achou tudo um aprisionamento, mas não desistiu dessa maneira de segurar manhãs.

De sobrosso em sobrosso ele zumbia nos recantos para pintar os nomes das coisas a fim de segurá-las ao seu alcance. Descobriu que do outro lado da serra outra serra lhe suplicava nome. Descobriu que a palavra encobre os nós, embeleza o feio e enfeia o belo. Depois começou a gritar os nomes do que queria por perto e ouviu que sua voz muitas vezes voltava como ia. Zumbia numa zumba na sua cabeça. E quando amarrava uma palavra na outra, esse zumbido trovejava mais alto e mais recados trazia. Foi assim que descobriu o canto, o encanto e o desencanto. Descobriu que a dor cantava pelo soluço e que o prazer acelerava o tempo e as pernas.

Depois desse tufão, Zumba descobriu que não podia mais ficar só. Descobriu com certa tristeza que não mais se pertencia. Era um possuído pelas palavras. Era um dependente do verbo. Era um homem que se fez verbo. Começou a conhecer o mundo encabrestado pelas palavras. Eram elas agora que conduziam seus passos e tangiam o horizonte para outras lonjuras. Não tinha mais escapatória, era um feito de palavras, era um produto verbal. Era Zumba, um bocado de letras que se uniram para lhe dar uma desconhecida e nova vida. Era o princípio procurando um fim. Era uma manhã de mãos estiradas para uma tarde desconhecida.

Zumba passou a ver o mundo como um feito de palavras. Descobriu que só ia até onde sua palavra ia. O mundo pequeno de seu outrora era agora uma sucessão de horizontes que se afastavam diante de seu desejo andarilho. Foi assim que sujou-se de distâncias, transviu-se nas pequenas coisas a ponto de colocar a roda grande para rodar na menor. Descobriu que havia formigueiro chamado cidade em que palavras se acumulavam de cimento e aço. Palavras fumaçavam, cuspiam pelo chão escorrente. Eram palavras que não se viam, não se olhavam e se escondiam umas das outras, desfraseando-se, e ferviam, torravam, pisavam, voavam, voavam e despencavam de morte morrida. Zumba destransfigurou-se.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 22/04/14.


 

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