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Vertigem do tempo

Batista de Lima


Aqui parado na beira da estrada, ausculto o tempo. Ele às vezes gorjeia pelo canto do pássaro e vai no eco que provoca. Ele monta na poeira que da estrada se eleva e vai com ela esporeando-a. O tempo é líquido e não consegue ficar no abraço ofertado. Ele vaza entre os dedos e sai saltitando em pantomimas zombeteiras. O tempo não me dá tempo de curti-lo na calmaria da hora certa. Enquanto tudo está parado, ele se move no silêncio, roendo as entranhas de cada coisa. Quando tento pegá-lo pela surpresa, ele já está bem à frente de minha vontade.

O tempo avisa que se cansa quem quer pará-lo. Por isso que, ao ouvi-lo arranhando a porta, não precisa lhe dar boas vindas, ele já está dentro da casa. No meu caso, ele apenas tenta avisar que meu tempo tem passado rápido, diante do desleixo de não saber aproveitá-lo. Mas como aproveitá-lo sem ser invadido por ele? Ao término dessa pergunta, muito distante ele já está, zombando do ato tão pequeno que é querer tirar do tempo, o tempo que nos é dado. Portanto, só com a ferramenta da metáfora é possível diminuir-lhe a marcha. Essa égua camaleoa se veste das cores que inventamos para a camuflagem diante da corrosão do tempo.

Só pela metáfora laço o pescoço do tempo, que mesmo fugindo a galope, deixa impressos nas minhas mãos, os pelos da sua penugem. Esse folgazão corrosivo não resiste também à memória. Aquela devastação que um dia nós dois cometemos, trago de volta na pescaria do retorno. Que bela luta que travamos, eu, exorbitando insensatez, ele, gritando voraz sem ser ouvido. Trazendo de volta esse tempo, posso ver que o gastei de bom proveito, e o que me restou de comportado, foi tudo que desperdicei. Por isso gostaria de dar-lhe outro nome. Poderia ser “longarina”, estrovenga”, “rebutalho”, “cafundó”, “borralho” ou “escombro”.

Na tentativa de diminuir sua voragem, tenho tentado encontrar minha terceira margem em que posso descansar minha quarta dimensão. Pode ser que por lá ele não galope como agora que aqui escrevo. Nessa luta do lobo contra o cordeiro só a hora tem salvação. Portanto, nessa beira de estrada, cada um se vê naquilo que olha, até no tempo que traz o futuro para aquém do horizonte. Diante desses impasses ainda é possível o amor, principalmente, o amor às palavras que tentam colocar o futuro um pouco além do horizonte. Pela palavra, eu retenho o tempo preso a cinco letras e mostro sua sanha devastadora.

Além da metáfora e da memória, ainda resta o sonho como forma de engabelar o tempo. Não é aquele sonho que se sonha em pleno sono. É o sonho que se fantasia muito além do real. Não importa a situação em que se esteja, é possível projetar um desejo para muito além. Quando a realidade não está agradando, pula-se para uma subjetividade suportadora do infeliz instante. Nesse momento, se o tempo não para, pelo menos o esquecimento de sua sanha faz-nos ir em frente. As mil e uma noites podem ser transformadas em mil e um dias, por ter sempre algo para realizar no depois.

Com a blindagem do sonho, de braços dados com a metáfora e salvando do esquecimento o que pousa na memória, é possível suportar a corrida infrene do tempo. O passado que deu certo se tornando presente é possível projetar o futuro. Acontece que plantar o futuro no presente não é agora, mas de amanhã em diante. O amanhã nunca é hoje. Assim, cada tempo no seu tempo, com ou sem sua vertigem, a insustentável vertigem do tempo.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 22/01/2019



 

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