top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Variações em torno da escrita

Batista de Lima


Às vezes temos ao nosso lado professores produzindo saberes que desconhecemos porque privilegiamos o que vem de fora. Necessário se faz que valorizemos a "prata da casa" e não fiquemos apenas como transmissores de valores alienígenas.

Tempos atrás escrevi nesta coluna sobre "A arte de escutar". Para alegria minha, o texto foi estudado pelos alunos da disciplina Psicologia Escolar II, ministrada pela professora Lina de Gil, no curso de Psicologia, da Universidade de Fortaleza. Esse estudo seguiu um roteiro que começou com a leitura do texto pelos alunos da turma. Depois, cada um escreveu um texto sobre as reflexões retiradas a partir da leitura. Em um outro momento nos reunimos para debater o que de interessante cada um deduziu do texto.

Essas deduções de cada leitor mostraram quantas variações em torno da escuta podem ser pinçadas pelo grupo a partir do texto como ponto de partida. Verificou-se, de modo geral, que não somos treinados para escutar. Não estudamos a arte de escutar, só treinamos para falar. Acontece que o terapeuta vai atuar, profissionalmente, muito mais escutando do que falando. Foi a partir daí que algumas reflexões dos estudantes chamaram a nossa atenção e que merecem ser destacadas neste espaço.

Gabriela da Cunha ressaltou "que esta escuta está para além da linguagem verbal, ela encontra-se enraizada no ser". Acredito que ela quis remeter à prospecção que o terapeuta precisa executar no seu mergulho na estrutura profunda do outro. Afinal, quando Lacan contrapõe metonímia e metáfora, é lá nessas profundezas do ser metafórico onde lateja, de forma estridente, um mundo em conflito. O barulho desse mundo precisa ser auscultado através de uma audição aguçada que só o terapeuta percusciente pode ser possuidor.

Rayana Silva, na sua reflexão, lembrou que "a maioria dos professores só fala (ou grita)". Esse ainda é um comportamento usual do mestre, baseado numa cultura docente antiga de uma "educação bancária", em que professor é para falar e aluno para ouvir, em que o docente é possuidor do saber e o discente é apenas receptor desse saber. Esse tipo de professor tem a frase acabada com ponto apenas final, e tira o poder da fala do aluno. Não há diálogo, não há escuta.

Andréa Marília pontuou a questão da autoavaliação. A necessidade que tem a estudante de Psicologia de fazer sua terapia antes de ingressar no universo do outro. O bom analista precisa primeiramente se conhecer para depois tentar conhecer o circunstante. Por isso que ela conclui: "quanto mais ouço-me, vejo-me, acolho-me, mais o mundo tem a minha permissão de se aproximar de mim". O que está fora de nós, também nos representa. Cada ser humano funda uma humanidade e a porta aberta para alcançá-la esta em cada um de nós.

Diana Lima chega à conclusão de que só com a Psicologia está aprendendo a arte de escutar, tarefa difícil mas necessária. A outra arte que está aprendendo é a "dos detalhes, ver os detalhes, escutar os detalhes (…) escutar abismos". Escutar abismos é tarefa de mergulhador, é trabalho de prospecção. Difícil é essa tarefa porque geralmente é nesses abismos onde as fúrias se alojam. O nosso duplo geralmente faz morada nesses desvãos sombrios e de difícil acesso.

Essas opiniões foram aprofundadas por outros estudiosos do tema como Polyne Said, Karole Carvalho e Érica Brilhante. Hélder Lucena, segundo o qual "quem fala muito não ouve", procurou direcionar-se para o universo infantil em que constatou que "no silêncio das crianças, há um programa de vida: sonhos". Nessa mesma linha de raciocínio Louise Bezerra afirma que esse hábito faz com que no futuro "nosso silêncio se transforme em escuta". Essas deduções são também de Cláudia Moreira, Felipe Teófilo, Luma Cavalcante, Camile Rola, Karine Aragão, Luciana Rôla, Júlia Carvalho e Alzair Ferreira.

Jurandir de Souza promoveu tão aprofundado comentário, que outros componentes da turma se propõem a formar grupo de estudo sobre o tema. Que a arte de escutar seja tema de seminários e de outros eventos de discursão pois é um terreno ainda desconhecido dos pesquisadores. O embrião para estudos futuros ficou latente no pensamento de cada um.

Finalmente, concluiu-se que houve mérito da professora em aproveitar um texto de um colega, para a partir dele chegar a tantas reflexões. O exemplo da professora Lina de Gil pode ser seguido por outros mestres locais que privilegiam os saberes que vêm de fora, assinados por nomes que a mídia sacralizou. Às vezes temos ao nosso lado professores produzindo saberes que desconhecemos porque privilegiamos o que vem de fora. Necessário se faz que valorizemos a "prata da casa" e não fiquemos apenas como transmissores de valores alienígenas, seguindo a velha prédica de que "santo de casa não obra milagre".


jbatista@unifor.br

21/09/10.

 

2 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page