top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Uma vila só de flores

Batista de Lima



Seriam ecológicas se não fossem flores de metal. A Vila das Flores caracteriza-se principalmente pela presença dos ourives, produzindo em metais preciosos, as mais belas jóias. Colocar essa vila em forma de texto literário é transcender o ícone e dar vozes ao metal. Não é fácil, pois, um escultor se tornar um literato. Essa é a difícil tarefa de Carlos Macedo, no seu livro Vila das Flores, de 2007, editado pela Expressão Gráfica Editora. Isso porque o primeiro ofício do autor foi esculpir com ouro e prata as mais variadas jóias. Depois foi que decidiu transferir esse mundo de cadinhos, rieiras, gamelas e forjas para o seio de metáforas e metonímias de cuidadoso artesanato. Nascido em Juazeiro do Norte, Carlos Macedo, desde os nove anos de idade, já estava envolvido com ourivesaria. A convivência com os ourives de sua cidade natal foi um aprendizado tão profícuo que em pouco tempo já estava ele fundindo, laminando, puxando fios, lixando e fazendo polimento de peças de ouro e de prata. Desse trabalho com jóias, passou a desenhar, pintar e, finalmente, escrever. Nesse último ofício foi que ele burilou Vila das Flores. Apesar de ser um texto narrativo, o autor, influenciado pelos detalhes da ourivesaria e da pintura, continua polindo e pintando, só que, dessa vez, com palavras. É, portanto, muito forte a presença das descrições, a ênfase nas cores, nos detalhes. O texto vai sendo esculpido com tantos detalhes que sua feição impressionista nos remete aos grandes artífices desse estilo de época. Os personagens são trabalhadores com ouro, com os nomes bem característicos de uma vila sertaneja imaginada. Ali vão desfilando Diomedes, demiurgo silencioso, dono da oficina; Isidoro Capela, artesão de refinadas peças, apesar do corpanzil de detalhes descomunais, como os dentes de cavalo e as orelhas de burro; Jacinto, monarquista revolucionário; Almita Breves, também fanática pela monarquia; e Maria das Dores, proprietária do lupanar do lugar. Toda essa fauna humana é caricaturada com alguns detalhes físicos predominantes, o que comprova ser o autor, um artesão. Ao longo da leitura, o leitor vai atando umas imagens às outras e começa a identificar aspectos reais da cidade de Juazeiro do Norte. Quando se está nessa atmosfera real, o escritor nos joga em um contexto irreal que beira, o texto, muitas vezes ao surrealismo. Assim, quando ele inicia a narração da chegada da maquinaria à cidade, tem-se a impressão de que estamos na Meca do Padre Cícero. Até a quilometragem com que ele marca a distância da Capital, 585 quilômetros, nos mantém no real. Mas quando começa a narrar os acontecimentos trágicos que cercam essa chegada, o leitor sai do real e entra com ele na fantasia. Essa entrada no simbólico leva o leitor a ingressar na deriva em que se lançou o autor. Os dois mergulham num mundo ameaçado pelo poder destruidor dessa tecnologia avançada. A máquina se apresenta como um monstro frio. Para alguns personagens, as máquinas são ´gafanhotos que vão comer a nossa lavoura inteira´. As máquinas chegaram para aposentar as bancas, as gamelas, o ruge, os canudos, os tufos, o fole, a fornalha, a rieira, o laminador, a fieira, o buril e o rascador. Vieram para reinar: os tanques, os fornos elétricos e os modeladores mecânicos. A modernidade ia transformando Diomedes em um dinossauro, até a missa em latim ia ficando em português e os padres, antes de costas, nas missas, agora mostravam que tinham rosto. É nesse momento da narrativa, em que o sagrado aparece, que paralelamente o profano mostra sua face. O capítulo ´Dorinha e o bordel´ é o ponto culminante da obra. Há um tratamento antropológico em torno dos personagens que circulam pelo prostíbulo e pelo seu entorno. Maria das Dores de Jesus, ou Dorinha, ou Redundância, a dona do bordel, fora ferrada por seu pai. ´Aproximou-se da filha com o ferro em brasa e o comprimiu sobre sua nádega direita a marca com suas iniciais´. A mulher ferrada como um animal, ´implantou, próximo à estação ferroviária o que viria a ser o mais animado bordel de que se tinha notícia´. A partir dessa fundação, o autor começa a descrever as mulheres que compunham o plantel de Dorinha, com as habilidades de cada uma. Lucy, a anaconda faminta e Rute, terceira filha de um casal de lunáticos. À moda Gabriel Garcia Marques, Carlos Macedo ingressa nesse mundo, pintando cada figura com arabescos requintados. Depois das mulheres, vêm os frequentadores com suas máscaras e suas manias, desde Francisco Paladar até os padres jovens do Sagrado Coração, que chegavam encapuzados, como penitentes. ´São uns padrezinhos canalhas, salvam as almas dos fiéis durante o dia e nós salvamos as deles à noite´, diziam as meninas de madame Dorinha. Outro personagem que adquire importância na narrativa é o louco Ribamar, bisneto de um francês que escapara da gripe espanhola. Como todo louco, ele tem comportamento surreal e inusitado e se mistura com beatos, prostitutas e espertalhões, formando um conglomerado humano rico na sua antropologia. Louco também é João Rodolfo que diariamente ia velar no cemitério os mortos que não conseguira matar na guerra de catorze. Além desses loucos, há casos de mulheres taciturnas que vivem casamentos imaginários, com dores imaginárias e filhos também imaginários. São personagens que levam ao pé da letra a afirmativa de que ´a vida é uma penitência´. Esses loucos possuíam projetos estranhos como ensacar fumaça para exportação, desentortar bananas para facilitar seu transporte e transpor o oceano para o sertão. Entre as coisas absurdas que proliferavam na Vila das Flores estava o circo de Zoé. Durante seis meses, ele exibe um galo com chifre, um gato com duas cabeças, um porco com três orelhas, um bezerro com cinco patas, um asno com dois rabos e um crocodilo com chifres. Esse circo de aberrações só não impressionava Redundância que considerava seu bordel muito mais recheado de extravagâncias. Seis meses depois a população expulsa o circo da cidade. Ao final da narrativa é preciso concordar com o narrador. Vila das Flores é um grande navio em processo de naufrágio e seus personagens são criaturas desfiguradas com os pés num chão rarefeito e as cabeças para além das nuvens. O importante é se constatar que por traz de todo esse cenário há um maestro tentando um ordenamento nessa mistura de seres tão estranhos. Carlos Macedo termina por ser esse maestro e o leitor não consegue ficar apenas como espectador, entra também nessa encenação, e, se não se tornar também regente, pode se tornar personagem.

 

03/03/2009.

 

2 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

コメント


bottom of page