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Uma vida em trânsito

Batista de Lima


A primeira consequência da leitura deste livro de Jackson Sampaio é a exaustão. Ele viaja por várias partes do mundo, fotografando-as com as retinas e revelando-as por metáforas. O leitor precisa acompanhá-lo nesse transe que transita do relevo das cidades à geografia do eu lírico do viajor. Seu fôlego poético impressiona principalmente pelos mergulhos que imprime nos caudais da alma. Ler seus poemas não é apenas um trabalho de rastreamento é muito mais prospecção.

A primeira das seis partes em que se divide o livro é, a partir das perdas, uma busca desordenada com o seu itinerário tentando se delinear. Daí que no primeiro movimento dessa busca ele precisa ordenhar a memória. Para isso ele vai da pele ao abismo, para encontrar renhida guerra interna onde, "o senhor deus das coisas/ possíveis/ oferece vitórias e a marca/ da sedução" e "o senhor deus das coisas/ impossíveis/ oferece terríveis e oblíquos/ desejos". Para enfrentar essa guerra e trazê-la à tona, ele usa as artimanhas da linguagem.

A poesia de Jackson Sampaio é um exercício de linguagem. É através dela que ele imprime sua fala, seu ponto de tensão no contato com o outro. O leitor precisa estar atento, como um terapeuta, pois por mais que ele se disperse nas suas viagens, tudo que ele dispara vem carregado desse catarro da alma, cujo movimento do expelir nós chamamos de catarse. Quando o poeta se descobre seguido pelo seu leitor, feito cão farejador, ele tenta trocar de pele para se camuflar não apenas do observador mas principalmente de si próprio.

O grande transtorno de Jackson Sampaio está em não conseguir encabrestar suficientemente seu duplo. E mesmo querendo vestir a pele do outro, as re-entrâncias da sua estrutura profunda borbulham na superfície como que querendo dizer que nenhum produto da alteridade prescinde de um entrelaçamento de falas. Essas falas se imbricam numa função poética tão instauradora que autor e leitor não se distinguem. Todos se empenham na construção do poético.

Nas duas estações seguintes do livro, "Quixadá: Poemas" e "Viagens: O Mundo", Jackson Sampaio, chanceler, abre as cancelas dos seus territórios que também são nossos. Do território da memória ao território do poema ele traça uma estrada de mitos. Das cabeceiras metonímicas ao estuário metafórico ele edifica um rio cuja correnteza vai de sua pele a seus abismos. Como nós o acompanhamos, seus símbolos acidentais, passam a ser também nossos e passam a ter uma conotação universal.

No percurso pelo dorso de seus textos acelerei meu transporte para logo chegar à "Transvida", título do livro, onde o fenômeno poético me parece mais interativo. Ali, o território textual, ele nomeou de "Diálogos com a poesia alheia". É dessa sesmaria poética, sincronia na sua evolução artística, onde as intertextualidades estabelecem o convívio entre Jackson Sampaio e a ancestralidade literária que suas leituras edificaram.

O seu diálogo com Maiakóvski é antológico. Também Baudelaire não é apenas revisitado, mas ressuscitado de outras mortes que desconhecemos. Com Bertolt Brecht ele denuncia "a pobre conversa da bala/ a monótona função da faca". Na companhia de Éluard, o rio e o mar se tornam piscosos na pescaria de metáforas de água. Bocage dá lições de como dilacerar interditos, e Yeats, sonhador, inventa fábulas sobre amores estilhaçados. Quanto a Rilke, quem quiser saber, vá ler "Elegias de Duíno", no intervalo entre a febre e a metafísica de Jackson Sampaio.

Já na última parte do livro, "Traduções: as traições amorosas", Jackson Sampaio, mesmo utilizando ainda a voz severa das palavras, com um andar que não é só seu, tenta traduzir mas não consegue. Ele recria clássicos da poesia universal. São maravilhas, diante das quais, primeiro ele se extasia, para depois transportá-las para esse terreno ainda bruto da "última flor do Lácio, inculta e bela" que a um só tempo é "esplendor e sepultura". Nesse traslado, que é uma "Transvida", ele transporta para as carruagens verbais nativas, gênios como Eliot, Rimbaud, Poe, Cardenal, Vallejo, entre outros, dizendo, no entanto, para quem quiser ler, que traduzir é traduzir-se.

Finalmente, exausto desse mergulho, o leitor volta à tona, ofegante, para respirar o ar dos comuns. Ler Jackson Sampaio neste seu "Transvida" é um exercício de resistência. Mestre em desconstruções, sua terra arrasada se torna canteiro onde florescem culturas verbais. Ao leitor não cabe apenas a colheita dos frutos dessa messe, nem também o complemento do acúmulo dos celeiros. Ao leitor, cabe o ofício do replantio. A partir dessa prodigiosa safra, cabe-nos uma continuação, uma permanência. Afinal, assim como fez Jackson com os clássicos da sua preferência, e com os mananciais que no peito guarda, cabe a nós leitores, o edificar dessa epopeia continuada, nos vastos campos dessa diacronia onde o existir é uma construção.


jbatista@unifor.br

02/08/11.

 

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