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  • Foto do escritorBatista de Lima

Uma casa toda mãe

Batista de Lima


Encontrei aquela casa consternada de ausências tantas. O velho alpendre de abas pandas gemeu boas vindas que mal se ouviram. Parecia um chapéu velho, procurando a cabeça do seu dono. Ao abrir a porta, partida em duas, ouvi gemido de dobradiças acometidas de passado. Lá estava a sala que foi tão grande e amiudou não sei por quê. A rede azul, avarandada, deixou lembrança escrita em versos que o armador recita e canta. Um Jesus Cristo tão pequenino sofre sozinho no colo da mãe parede. Ao lado dele traças com fome se banqueteiam do Coração que é de Jesus.

A casa está ali, na planície deserta, como um navio que encalhou num mar que foi embora. Entrar pela porta da frente requer sair pela porta dos fundos e atravessá-la como a ferir um corpo mais morto do que vivo. No percurso entre entrada e saída o clã se ergue na algazarra da memória. Ali, a vida brotou, exuberou-se e feneceu. Nada mais funciona como nos tempos da ventura. Nem o couro da raposa consegue espantar os morcegos que festejam o abandono. Nem a janela que ficou aberta consegue trazer o vento para o dentro daquele convento de ratos. Até parece que por ali ninguém passou.

A velha casa tem seu oitão, limitando dentro com fora, separando o sul do norte com léguas de separação. O seu telhado vetusto encobriu noites de lua, mas também de escuridão, com chuvas relampejantes que o nascente sempre enviou. O pouco capim que resiste, a alguns metros de seu colo, faz surgir a vaca preta, do leite mais branco e espumoso que se alojou na lembrança. Na parte mais baixa do seu entorno, a velha cacimba aterrada resiste em barreiras de argila que o tempo não conseguiu soterrar. Na ladeira mais à frente, o caminho está mais torto, mostrando a dentadura cariada de uma cerca só de estacas. Vendo daqui não dá para ver onde vai dar essa estrada.

Certa vez um cego de guia, de viola, saco e rima, por esse caminho chegou, cantou na boca da noite, rimando dor com amor, e na madrugada fugiu, levando a moça em botão. Por essa ladeira chegou a carne fresca da vila, um deputado vivaz, trazendo promessas falsas e levando os votos na mão. Com tanto tempo passado, a terra aqui ficou mais baixa e das costelas das barreiras a fome mostra suas garras. Dá pra ver ainda à noite, certas estrelas antigas, e uma lua triste e sozinha, bordando saudades no céu. Fugindo dessa rotina, é a casa que se descortina, somando sorte com sina.

Em frente àquela casa, um juazeiro havia, que nascera sem espinho, ali se brincava de rei, quem em seus galhos subia. Um curral fincado ao sul guardava vacas de leite, e quando de nossa mãe apartávamos, de mamar quando bebês, era a vaca mais leiteira que suas tetas nos dava. Tinha ao norte cana e corgo, uma mangueira mais velha que todo mundo da terra. Aquele riacho se fez rio e nos tragou e levou, em busca do litoral, pôs-nos anéis em cada dedo, e mais fundura nos bolsos, mas não levou com a gente a bonança ali ficada. Nessa hora de retorno, só a casa resta em pé como ilha que se afoga nas águas do esquecimento.

Aquela casa ali sozinha, tipo Inês posta em sossego, mesmo morta ainda reina. Sai dali calada e triste, e se instala na saudade, com seu tempo de alegria, pão de arroz, milho e canjica, melancia e cajarana. Lado triste dessa volta é não ver povo dali, não ver pai e não ver filho, não ver fartura em volta, nem rede azul no alpendre. Casa velha abandonada, no teu dentro ganhei vida e agora aqui de fora, tento voltar não consigo. Foi seu tempo de ternura que as águas dos dias levaram. Aquela casa toda mãe no dia em que a dona partiu, também ela dali se foi.


jbatista@unifor.br.

15/10/19.

 

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