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  • Foto do escritorBatista de Lima

Uma casa só portas

Batista de Lima


Toda casa é repleta de humanidades. Desde sua construção, mãos carregadas de alma já lhe imprimem conotações de gente. Por isso que, mesmo antes de habitada pelos seus moradores, ela já está repleta de suas presenças. Entretanto, é no arquitetar dos ambientes em que reside o segredo do humanizar. A ambientação precisa possibilitar aconchegos. Afinal, uma casa tem um aspecto maternal, como se quartos, úteros fossem. Daí que a tepidez do ambiente possa figurar a temperatura interna da mulher. A casa é, pois, feminina. É maternal a partir da porta de entrada. O seu único compartimento masculino é o alpendre. Apenas no alpendre o masculino reina.

A construção da casa de dentro para fora é da alçada feminina. De fora para dentro é onde atua o construtor masculino. No encontro dos dois é onde o lar se instaura. O lar é a lareira maior em que o fogo do amor e da paixão brota. Portanto, o lar só se instaura a partir do encontro dos seus habitantes. A interação entre os habitantes da casa é que estabelece a temperatura ambiental. A mesa é que regula essas relações. É a mesa, o parlamento da casa. Nela se encontram sabores e humores. Não são apenas as iguarias que povoam a mesa. As falas também são servidas, tendo em vista que todos os habitantes ali se encontram. É a mesa o local mais democrático da casa.

As reações sinestésicas de antigos comensais, em revisita, brotam mais no contato com a mesa do que com o fogão. Isso porque cozinha e alcova são espaços com interditos numa casa de moradia. Esse dois espaços são os mais femininos das reentrâncias da casa. Por isso que nem todos os comensais têm acesso a esses dois ambientes íntimos da casa. Prova disso é que a mesa é posta numa posição em que o patriarca sentado na sua cabeceira tem visão dos comensais e resguarda as entradas para a cozinha e para os quartos. Não é preciso dizer que o poder está instalado na ponta da mesa.

Esse poder é temperado com rituais ditados ali por aquela versão do "pater familiae", versão romana que perdurou nos tempos. É a mesa um altar em que, numa celebração, poder e degustação se dão as mãos. Daí que a voz principal, às vezes a última, é a do patriarca, e as crianças são sempre instadas a ouvir os mais velhos, não falar aos mais velhos. Ter a palavra é ter o poder. Por isso os de menos poder, menos falam. E a mesa, o mais silencioso dos figurantes é que vai gravando tudo.

Uma casa precisa de respiração. Ventos do leste fazem bem. Eles purificam compartimentos por onde passam. O sol também traz para a casa notícias das alvoradas, resquícios do quebrar da barra. Precisa, o sol, trazer o nascente numa trajetória que dura um dia e sepultá-lo lá atrás, no poente. Esse ente que vira pó é a metáfora da vida que se compraz no aconchego que só a casa retém. Essa casa, como concha, está sempre em construção, enquanto habitada. Se esvaziada, ela entra em decomposição.

Uma casa necessita de muitas portas abertas com seus ventos peregrinos de braços com nuvens pandas. Precisa também hospedar imagens do azul do céu e em noites de lua grande, os suspiros do luar. Um alpendre faz muito bem ao cansaço de quem chega e ao adeus de quem se vai. Um alpendre tem que ter armadores e balaústres, uma rede sempre armada mesmo estando no baú. Essa rede tem que ter varanda das bem tecidas, feitura da dona da casa, pois uma rede sem varanda e uma vaca sem chocalho são desleixos de moradores que não merecem perdão. O alpendre, pois, tem que ser a porta maior de toda casa, feito janela da alma, repleta o tempo todo das coisas que do coração brotam.

Uma casa tem que ter raízes mais profundas que seus próprios alicerces. Que ancestrais dos mais antigos ali se confraternizem mesmo ali não tendo estado. Que os gritos das crianças façam couro aos passarinhos, e quando a chuva madrugadora transbordar pelas biqueiras, venha a mãe que vela sonhos, com o segundo lençol da noite. Que o dono da casa seja um domador de relâmpagos e guarde por trás da porta a coragem necessária na arte de conter perigos. É bom que ao redor da casa circulem dois cachorros labradores, "rompe nuvem" e "rompe ferro", e haja uma gata "mufana" parideira de gatinhos e comedora de ratos. No alto da cumeeira faz bem um couro de raposa para espantar os morcegos nas noites de escuridão.

Uma casa tem que ter, no seu dentro, outras casas, como gavetas e armários, cofres, baús e malas. São compartimentos fechados a chave de muitos cuidados, pois quanto mais fechados forem, mais cheios aparentam ser.

O construtor de uma casa precisa de mãos de poeta, fazer dos quartos, quartetos, de cada parede um verso, de cada telha, um verbo, rimar caibro com ripa numa rima só vista na arte de fazer telhados. Cadeiras também precisam andar pela casa inteira para repouso dos que estão dentro e descanso de quem vem de fora. Uma água bem dormida em um copo bem fornido, servido em cima da sede traz o conforto do corpo e a leveza do ânimo. Ao final da casa posta com sua vida instalada, é importante que nela lateje a alegria de quem constrói no coração de quem habita.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 24/03/15.


 

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