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Um rádio chamado Francisco

Batista de Lima


Era um rádio que de rádio só tinha o nome. Quando o adquiri, numa feira do Canindé, foi como troco na compra de uma garrafa d´água. O dono queria se desfazer do monstrengo esquecido na prateleira. Não tinha cor definida, não era grande, nem pequeno, mas falava. Até música ele transmitia. E transmitia bem, estridente. Teimava em gritar, bastava ter pilha. Tentei me desfazer dele como aquele cão sarnento da história. Iniciei levando-o para o estádio nas partidas do Ferroviário. No intervalo do jogo, deixava-o na arquibancada enquanto ia à lanchonete.

Meu propósito era que algum torcedor o levasse para casa ou jogasse no lixo. No retorno para o segundo tempo havia sempre uma roda de torcedores na sua audiência de forma respeitosa e circunspecta. Era até constrangedor para mim reassumir sua posse diante de sua feiura. Mas a torcida já sabia que aquela coisa me pertencia. Lembro-me bem de um clássico tricolor em decisão de campeonato. O juiz se chamava Joaquim Gregório e o atacante do Ferroviário era Luizinho das Arábias. Nosso jogador pegou uma bola mal lançada pelo goleiro e fez o gol.

Os locutores gritaram gol, os jogadores vibraram e a torcida exorbitou. Era a conquista do campeonato. O juiz anulou o gol legítimo. Minha reação foi jogar o rádio com fala e tudo para atingir o árbitro. O rádio caiu distante dele. E o pior é que o pipoqueiro o recuperou e de mão em mão, ainda gritante, o rádio velho veio para meu aconchego. Não tinha jeito, aquele rádio não despregava de mim. Mesmo deixando-o no carro aberto, ladrões por ele não se interessavam. Esquecido no armário, por meses, bastava tocá-lo para o som explodir alegre.

Às vezes ele começava a funcionar sozinho. Alguém encostava um dedo no seu corpo repelente e ele respondia com bela fala. Mesmo assim era importante me desfazer dele, mesmo já me apegando aos poucos à sua dedicação no ofício de falar. É tanto que certa vez o deixei na calçada de casa para que algum transeunte o levasse. Não demorou muito, o vizinho tocou a sirene para avisar que eu tinha esquecido o rádio na rua e, por cima, ligado em um programa policial. A partir daí comecei a oferecê-lo como pagamento a flanelinhas e guardadores de carro, todos o devolviam, preferiam uma moeda qualquer.

Enquanto isso o coitado ia ficando cada vez mas asqueroso de aspecto. Já não tinha cor nenhuma, e havia perdido qualquer semelhança com rádio. Mesmo assim, na sua pobreza indigente, tocava um pouco meu coração como se dentro dele existisse alguma coisa de humano além das vozes que transmitia. Quando estava encostado e mudo em algum compartimento da casa era como se me olhasse com ternura de criança carente. Havia de sua parte um pedido de atenção, um grito de socorro, algo que me tocava. Por isso fui deixando-o onde estava e desisti de colocá-lo no lixo, como pensei algumas vezes. Até que um dia resolvi levá-lo para o sítio e lá deixá-lo na casa onde nasci, junto com outros objetos que guardo de tempos antigos.

Tempos depois, voltando lá, fui recebido com festa musical. Era o velho rádio montado numa gambiarra de fios e pilhas, parecendo radiadora de quermesse. Era um som tão estridente que balançava as teias de aranha que lhe serviam de ninho. Todo um passado de glória parecia transbordar daquela velharia. E lá ficou todo o tempo da minha visita como que a zombar da minha pouca fé na duração das coisas. Tocou samba, tocou brega e até noticiário da Capital com notícias frescas ele empurrou nos meus ouvidos. Quase o trazia de volta no meu retorno. Mas o trouxe na consciência, na angústia por abandoná-lo.

Um fato, no entanto, me chamou a atenção, o velho rádio recebera um nome, Francisco. É tanto que me contaram que lhe batizaram na matina de um domingo, com bolo e canto de parabéns pelos vinte anos de vida útil e laboriosa na promoção de lazer. Houve até dança ao som de suas músicas e de alguns comerciais melódicos. Uma senhora caridosa lhe fez uma pequena vestimenta em formato franciscano para lhe ocultar a nudez. Francisco passou a ser respeitado como componente do clã, como um familiar novidadeiro. Passava o dia todo empurrando o mundo de casa a dentro, atualizando as pessoas e até educando na forma de falar.

O mais inusitado, no entanto, aconteceu em seguida. Certo dia de outubro, chegou lá ao sítio uma senhora em romaria, vinda das bandas do Canindé. Trazia consigo um menino de uns oito anos, vestido com roupão de franciscano e o cordão de São Francisco amarrado na cintura. A mãe chegou contando que tivera um sonho, dias antes, de que São Francisco lhe aparecia dizendo que ela adquirisse aquele velho rádio falador e colocasse à disposição de seu filho para que todo dia ele ouvisse a transmissão religiosa transmitida. Com o tempo o garoto ficaria bom do tumor que crescia em sua cabeça. Depois de curado o garoto, que o rádio fosse devolvido ao dono.

A história parece invencionice, mas aconteceu que o rádio foi emprestado e aquela senhora, com seu filho, o levaram para Alagoas. Quando soube da notícia achei por demais precipitado o empréstimo de meu rádio, sem nenhuma consulta de minha parte. O certo é que na romaria seguinte, aquela senhora de volta a Canindé, com seu filho devidamente curado devolveu o rádio milagroso. Segundo registros da oralidade local, ele voltou todo enfeitado de retratos do Santo, bem como fotos do garoto que voltara ao gozo de saúde. Acontece que o coitado do rádio foi dividido em pequenas relíquias distribuídas entre a população da região, de forma que milagre maior será alguém hoje encontrar pelo menos uma pilha daquele rádio que se chamava Francisco.


jbatista@unifor.br

19/07/11.

 

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