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Um romance de Reinaldo Carleial

Batista de Lima



"Alto das duas cruzes", de Reinaldo Carleial, é um romance memorialista publicado em 1982. Sua publicação foi possível graças ao apoio da Secretaria de Cultura e Desporto, Imprensa Oficial do Ceará e Banco do Estado do Ceará. Nessa época o Governador do Estado era Manoel de Casto Filho e o Secretário de Cultura, o escritor e jornalista Manuel Eduardo Pinheiro Campos. A obra tem como cenário uma cidade do Cariri cearense que mesmo não sendo citada ao longo do livro, o leitor a identifica como Barbalha, terra natal do autor. Foi ali que em 1910 nasceu Reinaldo, e passou os verdes anos de sua vida. Quando moço, transferiu-se para a Bahia, onde foi cursar a Faculdade de Direito.

Com o tempo, o autor transferiu-se para Fortaleza, onde dedicou-se principalmente ao magistério, chegando por dois mandatos, a ser diretor do Colégio Municipal. Dedicado às letras e com atuação no jornalismo, sua docência como professor de português o conduziu a ocupar uma das cadeiras da Academia Cearense da Língua Portuguesa. Como poeta é antológico seu poema "Língua Portuguesa", entre outros que produziu. Seu telurismo o levou a produzir esse romance que mostra os caracteres da cidade em que nasceu, retratando seu folclore, os costumes do início do século XX e os folguedos praticados por aquela população caririense, incluindo também a culinária local.

Na apresentação, o escritor Abdias Lima começa dizendo que o "Alto das duas cruzes" é "um dos livros mais belos da literatura brasileira". Já no Prefácio, que é do próprio autor, fica claro que o livro é um regresso ao reino da sua infância. Seu cenário é pintado como uma pequena cidade nordestina que ainda não possuía luz elétrica. Daí a população ir dormir cedo para mais cedo acordar com o canto dos passarinhos, fazendo coro nas árvores dos quintais. Logo em seguida surgiam os meninos brincando de cavalo de pau e as meninas com suas cantigas de roda. As mulheres em suas casas já botavam para funcionar suas máquinas "singer" e os homens de enxada e foice rumavam para seus roçados.

Nesse cenário vários tipos populares ficaram na memória do narrador. São: o contador de histórias, o coronel latifundiário, o cangaceiro, a moça enganada pelo filhinho de papai, o bodegueiro e outros mais, todos compondo um tecido social bem heterogêneo. O contador de histórias é Vicente Caipora que além dos causos que conta, possui uma técnica especial de encantar seus ouvintes.

O coronel poderoso é aquele que se coloca acima de todos os poderes da pequena cidade, e que possui seu bando de cabras jagunços para as vinditas contra os mais fracos. O cangaceiro é um injustiçado que só consegue se vingar contra a injustiça sofrida, se ingressar em um bando de facínoras para perpetrar sua vingança.

A moça enganada pelo filho do coronel é Aldenora. Essa moça, enganada pelo filhinho de papai, um tal de Perboyre, aparece grávida e depois se junta com o pai do rapaz enganador. É aí onde começa o conflito maior do livro. Aldenora possui um irmão chamado José que não se conforma com a situação e assassina o Coronel Pedrosa, pai do malandro que desgraçou a vida de sua irmã. Por isso que, perseguido, entra para o cangaço em busca de proteção. Vem então à tona um dos motivos da existência dos bandos de cangaceiros que infestaram o Nordeste naquela época, a vingança. Zeca Bravo, irmão de Aldenora, é um típico cangaceiro vingador, produto da violência com que os pobres eram tratados pelos coronéis latifundiários.

O Cariri era pródigo em cangaceiros e fanáticos. Aqueles que não se empenhavam em fazer justiça com as próprias mãos, como os cangaceiros, entregavam-se às providências divinas. Eram os fanáticos. Por isso que no livro aparece a figura do Padre Cícero, talvez o único personagem real da história, sempre dando assistência espiritual aos seus romeiros fanáticos. Por outro lado, o Dr. Floro Bartolomeu praticava a política da violência igual aos coronéis violentos da região. É portanto nesse caminho que dá para entender os conflitos do Cariri.

Reinaldo Carleial não fica apenas na narrativa desses conflitos. Ele também descreve a culinária da sua cidade, que é um retrato gastronômico do Nordeste. A agricultura familiar, tão em voga na época, proporciona os ingredientes da alimentação. Os produtos que chegavam à mesa, oriundos do roçado próximo se fixavam prioritariamente no milho. Ele podia vir cozido ou assado, em forma de pão, canjica ou pamonha, angu, mungunzá, pipoca, fubá, bolo, beiju, ou ainda junto com o feijão, no prato chamado de feijão com pão, ou ainda acompanhado com o queijo de coalho ou manteiga da terra. Também na culinária nordestina surgiu o baião de dois como produto resistente à seca, pois surgiu exatamente com a falta da água, quando o arroz passou a ser cozido no caldo do feijão.

Além desses elementos das refeições à base de cereais, é importante verificar as frutas que segundo o autor eram cultivadas nos quintais. Nesses espaços vicejavam mangueiras, goiabeiras, ateiras, bananeiras, coqueiros, laranjeiras, limoeiros e romãzeiras. Ao lado dessas fruteiras, era possível encontrar as plantas medicinais como mastruço e cravo, erva cidreira, marcela e capim santo.

Também as flores do jardim fronteiro à casa eram de chamar a atenção: jasmim, bogari, rosa, manacá, dália e perpétua. Esse conjunto de fruteiras e plantas ornamentais formam no livro um tecido natural em que o homem, mesmo estando numa casa da cidade, está em contato permanente com a natureza. Esse cenário descrito por Reinaldo Carleial transporta o leitor para uma realidade que existiu e que dela a cada dia infelizmente nós mais nos distanciamos.


FONTE: Diário do Nordeste - 02/10/2018.


 

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