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Um homem chamado Passado

Batista de Lima




Ele já nascera maduro. Só gostava de ouvir histórias envelhecidas. Só se interessava por coisas do arco da velha. Eram causos que vinham com o mofo dos tempos. Preferia a companhia dos idosos com suas histórias de passos lentos e pijamas de listras. Aprendeu logo a jogar gamão e a usar tabaco para os espirros noturnos. A primeira calça que vestiu já foi de pernas compridas. Jamais vestiu calças curtas. Aos oito anos pensava como se oitenta tivesse. Adorava seu nome de pia: Gerôncio. Fazia questão de se divulgar como um apreciador de eras e entusiasta de árvores genealógicas.

Os da sua idade eram deixados de lado. Em vez do Contourré preferia o cheiro da naftalina. Enquanto os da sua faixa etária vestiam-se a cores, ele enterrava-se no preto e branco. Seu gosto era pelas sombras, pelos borralhos, pelos monturos em que as eras se acomodavam. Abominava as ideias avançadas da mãe e as aventuras do pai. Usava preto e previa o final dos tempos ao final de cada ano. Assim ia voltando, quando todos estavam indo. Havia fuligem nos seus conceitos e teia de aranha nas previsões.

Falava de sóis atrozes e de noites de volúpias temporais. Suas afinidades começavam ao pôr do sol e as repulsões ao quebrar da barra. Em Gerôncio pulsavam dores passadas e eras priscas. O tempo estava amarrado pela memória e quando aparecia, era arrastando pesadas correntes. Mas tudo é passivo de mudança nesse mundo de surpresas. E Gerôncio, afeito a contemplações, frequentando casarões antigos, terminou por encontrar o antigo Palácio do Barão.

Foi nos jardins do Palácio que ele a encontrou. Era apenas um corpo deitado em um banco sujo por baixo de uma velha mongubeira. Era um trapo humano com pouco mais de vinte anos. E dormia, e babava por um canto esquecido da boca. Tinha, no entanto, o mistério das coisas envelhecidas. Estava se mexendo ainda, apesar do estado depauperado. Acordou-se e olharam-se como duas estátuas antigas que se miram. Ela abriu a boca e espreguiçou-se. Ele abriu o coração e chamou-a para pousar.

Gerôncio falou de coisas vetustas, ela falou de coisas futuras. Assim, terminaram criando o presente. Foi uma grande descoberta. É tanto que ali mesmo, forrados pelas folhas secas da velha árvore, agora rejuvenescida, eles fundaram o paraíso. Um bem-te-vi musicou aquele encontro nos jardins daquela casa. E os dois partiram sem promessas, mergulhando pela boca grande da selva de pedra.

Acontece que na manhã seguinte os dois estavam no mesmo banco, debaixo dos galhos da grande árvore. Promessas já estavam criando ramos debaixo da mongubeira, e, dias depois, os dois já olhavam juntos numa mesma direção.

Gerôncio começou a notar que o passado já fora futuro e Metálica verificou que estava voltando do amanhã. Trocaram os jardins do Palácio pelo debaixo do espigão. Depois passaram para um velho ônibus abandonado até chegarem a um barraco na Vila Descalça. Ela lavou as roupas dele, ele trouxe mangas para a fome dela. E dormiram noites de sono longo. E trocaram promessas cumpríveis para o dia seguinte. Os dias foram ficando flácidos e as noites encurtaram. Dos dois lençóis que ganharam da vizinha, um ficava guardado. Ela passou a gostar do ronco dele. Ele passou a gostar dos pesadelos dela. Ele gostava de lavar os pés dela. Ela adorava cochilar no colo dele.

Assim foram somando um mais um, sem preocupação de chegar a dois, mas com medo de chegar a três. Chegaram até a fazer juras de amor numa noite de sábado pois havia uma lua no céu. Mas havia uma estrela na rua e um sol que se punha na esquina. Gerôncio, lembrando as velhas noites de velhices, caiu-se pela estrela pirilampa do seu bulevar. Metálica viu brilhos no sol que clareava a esquina. E com esses novos encantos, os dois começaram a verificar que roncos e pesadelos são irreconciliáveis sobre o mesmo colchão.

Cada um virou a sua esquina nos braços de outros ventos. Metálica rumou para o leste onde o sol pisca primeiro. Gerôncio rumou para oeste onde mora a escuridão. Depois de cinco anos dessas mudanças, esse filho do passado, no seu novo envolvimento se envolveu por demais nos desvãos que a noite oferta.

Com sua companheira e com gastos para manter certos vícios, acumulou uma dívida dificilmente pagável. Chegou a uma encruzilhada tal, que só havia duas formas de pagamento, ou daria sua vida, ou a de alguém tiraria. Como a segunda opção lhe pareceu mais viável, mandado pelo seu credor e devidamente municiado, dirigiu-se à Feira do Beco, em que uma líder comunitária queria moralizar a comuna.

De arma posta à cintura vasculhou tenda por tenda até encontrar aquela em que a presidente da associação dos vendedores vendia confecção. Estava ela sozinha de costas para a entrada, espanando prateleiras quando com voz conhecida, chamou por uma criança, de cinco anos de idade, pelo nome de Gerôncio Filho.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 29/03/2016.


 

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