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Um “flaneur” dos confins

Batista de Lima



O termo “flaneur”, quando pronunciado, sempre nos remete a João do Rio, que incrementou no Rio de Janeiro, o jornalismo de rua. Era aquele jornalista que não ficava plantado em redações de jornais, mas ia à rua, sentir o pulsar da população no coração da metrópole. A partir daí é possível se pensar em um cronista que vai aos confins dos nossos sertões, sentir, nas pequenas cidades e povoados, a pulsação do povo esquecido do sertão, com suas sabedorias e seus modos curiosos de viver. O Ceará teve o privilégio de possuir um vasculhador de seus sertões, um cronista da caatinga, o “príncipe dos folcloristas nacionais”. Seu nome, Leonardo Ferreira da Mota, ou Leota. Leonardo Mota nasceu em Pedra Branca, interior cearense, em 1891. Foi aluno do Liceu do Ceará, do Seminário de Fortaleza, e bacharelou-se pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Foi redator do Correio do Ceará e proprietário de cartório, que vendeu para custear suas pesquisas pelo sertão nordestino. Pertenceu ao Instituto do Ceará e à Academia Cearense de Letras. Depois de muitas excursões boemo-folclóricas, pelas cidades sertanejas, recolheu-se em dedicação às letras e à fé. Morreu aos 57 anos em 1948. Deixou importantes obras representativas de nosso povo sertanejo: Cantadores, Violeiros do Norte, Sertão alegre, No tempo de Lampião. Sua pesquisa de campo, feita sem o aparato metodológico, que envolve as dissertações e teses universitárias, é matéria bruta que após editada está aí disponível para quem quer viajar pelos sertões sem sair da capital. As pequenas cidades eram seu destino e suas feiras eram seu laboratório. Afinal, sabia ele que a feira é o museu antropológico das cidades. E era nelas onde ele vasculhava seus saberes. Depois, o folclore, a partir dos cantadores que pontificavam nesses logradouros, ponteando suas violas ou empunhando suas rudimentares rabecas de sons melosos. Leonardo Mota, no entanto, não esqueceu o homem do litoral, o pescador. Fez uma ponte entre o pescador e o vaqueiro. Sabia ele que a solidão desses dois tipos humanos era um manancial para a garimpagem de suas histórias e do folclore das gentes. Foi, no entanto, nesse transitar pelos sertões nordestinos que ele manteve contato com as várias histórias e os causos que mitificaram a figura do rei do cangaço. Leonardo Mota e Lampião viveram a mesma época, trilharam praticamente as mesmas paisagens. Era de se esperar então que Leota se interessasse em recolher histórias em torno do Virgulino. Foi daí que surgiu o livro No tempo de Lampião, cuja edição mais recente, a 3ª, foi editada pela ABC Editora em 2002, com o mesmo prefácio das edições anteriores da lavra de Fran Martins. O interessante nesse livro é que ele resulta de pesquisas de Leota, com averiguações feitas diretamente nas fontes, sem invencionices de gabinetes. Seu precioso material, colhido em andanças pelos mais ignotos rincões, é merecedor de fé, numa época em que pouquíssimos se aventuravam em romper veredas para ouvir matutos. Para custear essas viagens, que empreendia desde moço, foi preciso tornar-se conferencista e passar pelas mais inusitadas situações, em pequenos hotéis, em pensões mambembes e estalagens desconfortáveis. Nesse convívio com o povo esquecido do sertão sempre mostrou simplicidade, bom humor e galhardia. As suas pesquisas começaram a se concretizar quando começou a publicar livros onde as enfeixava. As primeiras foram em torno dos poetas populares do sertão. Eram homens sem instrução formal mas portadores de geniais talentos, que varavam esse sertão semi-deserto com sua viola no saco ou a rabeca gemedeira, versejando nas feiras, nas festividades, através de repentes ou de sagas noticiosas dos eventos sertanejos. Verdadeiros sábios itinerantes, esses trovadores daqueles tempos eram os cronistas do sertão. E aí serviram de fonte de estudo para o irrequieto Leota, que levou essa cultura para o conhecimento dos pracianos. Leota, nas suas andanças, manteve contato com os famosos cantadores do seu tempo, como Cego Aderaldo, Zé Pretinho, Inácio da Catingueira e Manuel Galdino Bandeira. Também, fisicamente era uma figura que impressionava o sertanejo. Meio bonachão, com seu corpanzil de homem da cidade, o matuto perguntava-lhe logo se era doutor de questão ou doutor de doença. Geralmente, para tristeza dos circunstantes, afirmava que era conferencista. Era, no entanto, antes de tudo, um pesquisador que prestou um grande serviço à cultura nacional, revelando a mentalidade do sertanejo esquecido. Nesse cenário do sertão, foi onde ele colheu as narrativas que apresenta. Umas são absolutamente verdadeiras, por constarem posteriormente do espólio de pesquisadores que lhe vieram depois. Outras, no entanto, colhidas da boca do povo que mitificava a figura de Lampião, vêm carregadas das fantasias que vão adquirindo ao passarem de boca em boca sempre recebendo um tempero a mais na hora da contação. Tanto é, que no seu livro No tempo de Lampião, das 149 páginas, ele só dedica 44 à figura do rei do cangaço. As outras ele ocupa com o ´Anedotário, Adagiário e notas sobre a poesia e linguagem populares´. É então que surgem os mais variados tipos de personagens habitantes desses povoados dos confins. Os vigários, os delegados, os políticos autoritários, os bodegueiros e todos aqueles contadores de causos vão desfilando diante de sua pena e de sua curiosidade de pesquisador. Tudo que fosse curioso, inusitado e estravagante era assentado nos seus papéis. Até da nossa história literária Leota ocupou-se. Afinal, foi o primeiro escritor cearense que escreveu obra inteira sobre a Padaria Espiritual. Essa entidade literária fundada em 1892 teve como mentor principal, o escritor Antônio Sales. Foi um movimento tão vanguardista para sua época, que já serviu de fonte de pesquisa de muitos estudiosos. Até de tese de doutoramento, como é o caso de A Padaria Espiritual e o Simbolismo Cearense, de Sânzio de Azevedo. No entanto, o pioneiro nesses estudos foi Leonardo Mota. Por tudo isso, é que Leota precisa ser muito mais estudado. Que seja feito um levantamento biográfico, mostrando seu itinerário pelo sertão deste nosso Nordeste. Seminários sobre sua obra e reedição de seus livros. Leota ainda é um desconhecido.

 

07/07/2009.

 

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