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Um esteta do avesso

Batista de Lima



A vocação de Alcides Pinto para essas reflexões leva-o a um desvendamento das coisas, para culminar com o desvendamento da palavra. Na sua busca pela intimidade das coisas, traz delas a alma embutida no avesso de cada uma. Daí seu alumbramento diante da palavra, como o grande milagre da criação. Nelly Novais Coelho, quando comentou Reflexões - Terror - Sobrenatural e Outras Estórias, de Alcides Pinto, enfatizou nesse autor cearense, o cultivo de uma estética do avesso, como forma de humanização. Esse avesso se revela na sua busca da beleza presente nas "formas feias e abjetas", como um dos caracteres de sua feição surrealista. As outras características seriam: "a linguagem metafórica; a irracionalidade ou o absurdo das imagens; a linha longa do poema em prosa; e a consciência da construção poética como geradora de um novo real". Nesse contexto se encaixa perfeitamente o "belo horrível" que ele cultiva. Para conseguir o estado de graça semidivinizado, ele vasculha o que há de mais baixo, hediondo e abjeto do humano sem esquecer de pedir ajuda a Deus para descer aos infernos do corpo. Sua busca de Deus pelo avesso o leva a bradar: "Senhor, ensinai-me toda a casta de vícios sórdidos, para/que se instale no meu peito o ato mais vil". Daí seu pendor em criar trilogias insólitas. A "Trilogia da Maldição", une "O Dragão", de 1964; "Os Verdes Abutres da Colina", de 1974 e "João Pinto de Maria", do mesmo ano. Já a "Trilogia Tempo dos Mortos" congrega "Estação da Morte", de 1968, "O Enigma", de 1974, e "O Sonho", de 2005. Em todos esses seis livros, o absurdo, o esotérico, o fantástico e o satânico são manifestações de um "avesso" provocador e sombrio. É nesse transbordamento do avesso onde se instaura uma transfiguração, isso porque numa zona tão desértica, onde a única vegetação metafórica é o embate entre Eros e Tânatos, ele cultiva um jardim de signos poéticos, fazendo com que construção e destruição fruam pelo mesmo sangradouro. Não se pode, no entanto, deixar de lembrar que, das suas construções poéticas, ao longo dos anos, a única que apresentou avarias na sua alvenaria foi exatamente sua arquitetura concreta. A partir de 1957, Alcides Pinto, influenciado por vanguardistas paulistas, cariocas e mineiros, faz eclodir no Ceará, o movimento concreto numa parceria com Antônio Girão Barroso, Horácio Dídimo, Pedro Henrique Saraiva Leão, Rogério e Carlos Alberto Bessa. Mas o mérito desse movimento entre nós não está na produção poética individual, mas sim nas aproximações com outras vertentes artísticas de nossa capital. Houve um namoro muito sério entre os literatos vanguardistas e os artistas plásticos da SCAP (Sociedade Cearense de Artes Plásticas), com o pessoal do cinema, da arquitetura, da música e do teatro. Essa efervescência artística e um tanto comunitária colocava no mesmo barco, Mário Barata, Estrigas, Sérvulo Esmeraldo, Aldemir Martins, Antônio Bandeira, com seus pincéis ao lado dos literatos e de Eusélio Oliveira e Luís Geraldo de Miranda Leão e outros do cinema, com o surgimento das primeiras manifestações da Comédia Cearense no teatro e uma adesão dos músicos à Bossa Nova, isso sem falar na fundação da UFC onde se concentrava a Arquitetura com Liberal de Castro, Nearco Araújo, Neudson Braga. Tudo isso num movimento em que a industrialização brasileira acelerava e Juscelino como presidente tentava realizar em cinco anos o que só era possível em cinquenta. Alcides Pinto não ficou incólume a esse contexto, mesmo se sabendo ser ele não um homem de superfície e sim de profundidades. Por isso que Nely Novais Coelho acerta ao dizer que nessa época sua "produção foi um mero exercício para a imaginação criadora, pois a natureza de seu talento exige mais fundas reflexões do que as então permitidas pelo formalismo concretista, ou similares". A vocação de Alcides Pinto para essas fundas reflexões leva-o pois a um desvendamento das coisas, para culminar com o desvendamento da palavra. Na sua busca pela intimidade das coisas, traz delas a alma embutida no avesso de cada uma. Daí seu alumbramento diante da palavra, como o grande milagre da criação. Acontece que essa palavra viciada de mesmo uso, precisa ser revirada para adquirir outra utilidade ainda mais duradoura. É esse revirar das coisas, esse desemborcar das metáforas que traz o rejuvenescimento verbal. Alcides Pinto revira o monturo verbal e retece o que encontra quebrado. Por isso que Juarez Leitão, na análise de sua obra, chega a afirmar que ele "acredita vivamente na alma das coisas e dialoga com o vento e a chuva, conversa com as paragens ermas e garranchentas de seu lugarejo, com o céu e as trevas". No seu ingresso no mundo trevado do fantástico, o insensável que ele personifica é a morte. Para tanto ele se inicia pelos fenômenos que levam a essa estação derradeira. Entre esses fenômenos está a fome, que "como um incêndio sem ruído, / mastiga a lua, rói os crustáceos do céu / e come o próprio corpo em pedaços". A fome personificada é tão devastadora que a morte como estuário que a recebe se torna alívio de domadora. Esse desprendimento oscilante entre vida e morte, em uma constante mediação, leva Alcides Pinto a considerar o ser humano tão diminuta figura quanto seja seu apego à epiderme. A liberdade para ele está exatamente no rompimento dos grilhões que prendem o ser humano no calabouço das superfícies. O que lhe interessa se aninha nos porões do ser. Sua poética emerge de dentro para fora num movimento contrário ao que fazem os almofadinhas versejadores que pululam por aí feito beletristas de salões. Alcides Pinto, quando os convidados adentraram o salão de festas, já os tinha esperado na latrina. Quando o esquife desceu à sepultura ele se libava no sétimo palmo. Quando a morte afiava seus dentes ele lhe ofertava flores. Foi aí então que os que tentaram lhe entender, desvendá-lo dos seus mistérios, encalharam nos adjetivos: mágico das letras, poeta maldito, criador de mitos, profeta surreal, ave-pernalta e sombria, cronista da atormentada ribeira do Acaraú, poeta múltiplo e uno, menestrel do soturno, sátiro viperino, sociólogo do sexo, arauto de mitos, estandarte da ecologia. Nessa arte de qualificação, louvores para Juarez Leitão que une a verve poética com a retórica de bacharel. Mas, é Nelly Novaes Coelho quem melhor detecta o avesso alcideano ao vê-lo dicotômico e sem enumerar mostra-o barroco nas suas oscilações entre: "Erotismo / Ascetismo; Racionalidade / Loucura; Amor / Morte; Ascesa / Abjeção; Violência / Mansidão; Grandeza / Miséria; Generosidade / Egoísmo; Lucidez / Delírio; Bondade / Maldade; Amor / Ódio; Real / Imaginário".Daí a pergunta que não quer calar: Por que os rotuladores não veem Alcides Pinto como neo-barroco?

 

17/11/2009.

 

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