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  • Foto do escritorBatista de Lima

Um deserto chamado Macário

Batista de Lima



Macário era corcunda. Carregava nas costas o peso do deserto em que se tornara. A sequidão de tudo queimava sua paciência. Tinha, no entanto, uma resposta para seus males, o silêncio. Falar, para ele, era arrastar coisas pesadas de dentro de si. Era o único momento em que suava. Era um parto difícil, ter que falar. Preferia grunhir. Não se sabe sua origem. Se tinha pai, se tinha mãe, ninguém sabe. Sabe-se que era uma sobra da moagem. Muitos meninos vinham ao engenho em busca de doce. No final de uma certa moagem ele sobrou. Sobrou como sobram a tiborna, a palha seca da cana, o bagaço que não foi queimado. Ficou por ali até ser recolhido pela mãe dos abandonados, a rua. Foi o primeiro menino de rua do povoado. Levava tabefe de qualquer um e não chorava. Não tinha lágrimas para ninguém. Isso irritava os que lhe batiam. E ele apanhava mais, saco de pancada. Finalmente, no entanto, alguém lhe arranjou uma ocupação, ajudar na matança. Começou lavando o fato das reses e com pouco já estava retalhando carne. Daí para ser promovido a sangrador de boi foi um pulo. Tinha um certo prazer em sentir o sangue quente da rês molhando sua mão direita. Sentia prazer em ver o boi ajoelhar-se exangue à sua frente e sucumbir. Um dia teve uma desavença com o chefe da matança que lhe atrasou um pagamento. Foi o suficiente para meter-lhe a faca na garganta e sentir prazerosamente o sangue correr-lhe quente pela mão e ver a faca ensanguentada. Daí em diante não fez mais diferença entre homem e boi. Gostava de vê-los morrendo diante do seu golpe certeiro. Isso lhe rendeu anos de cadeia e muita pancada. Perdeu quase todos os dentes e as oiças do ouvido esquerdo de tanto os policiais lhe baterem de palmatória, chute e chicotada de rebenque de fios. No entanto, não chorou em nenhum momento. Depois de curtir sua dívida pelos crimes, foi posto na liberdade das ruas. Para ele, pouco diferente da prisão. No entanto, voltou ao ofício de magarefe. Era Macário ganhando a vida em ver a morte. Um dia, ao esfolar uma ovelha, dela extraiu um filhote ainda vivo. Notou que a criação estava prestes a parir quando a matou. E aí impressionou-se com o pequeno borrego que continuava teimando em viver. Levou-o consigo e dele começou a cuidar. Para qualquer parte que ia, levava o borrego que aos poucos ia virando carneiro. Inclusive levava-o para a matança e sentia o olhar reprovador do animal quando ele sangrava a rês. Era um olhar que o feria, e a dor era bem maior que as porradas que levara nas ruas. Era um afeto rejeitado logo em seguida. Macário começou a amolecer, começou a ter remorso. O carneiro não gostava de ir à matança, impacientava-se. O rapaz botou, por fim, uma banca no açougue para vender miúdos de criação. Aposentou a faca e esqueceu a sensação do sangue morno escorrendo pela mão. O carneiro era seu companheiro de todas as horas e às vezes o guiava para onde ele não pensava ir. Eram sentinelas, visitas de cova, missas de sétimo dia, terços de penitentes, mas principalmente casas de doentes. Um dia, no entanto, Macário sentiu um latejar nos olhos. Era como se o coração pulsasse nas retinas. Coisa esquisita, a vista começou a escurecer aos poucos. A cada dia, a noite ia se espraiando à sua frente, mesmo ao pino do meio dia. Não deu um ano, e Macário estava totalmente cego. Vinha e voltava do trabalho guiado pelo carneiro, o qual escolhia os locais por onde conduzia o cego, inclusive a própria igreja. Macário começou a ouvir missa com seu guia ao lado. Não se importunava com os sermões longos que o vigário desfiava quase a manhã toda para duas ou três beatas que permaneciam na capela. Macário deixou o trabalho no açougue e passou a fazer pequenas cobranças aos devedores do comércio. Qualquer comerciante lhe dava um percentual pelo pagamento de dívidas que ele conseguia. Seu método de cobrança era infalível. Orientava-se até chegar ao endereço do devedor. Ali aboletava-se com seu carneiro e ficava. Passava horas e até dias, sem dizer palavra. A vizinhança já sabia, Macário estava ali para fazer cobrança. Era uma desonra vê-lo ali sentado. Para se livrar, o devedor pagava a dívida com a maior rapidez possível e se livrava da incômoda presença. Praticamente eliminaram-se as dívidas atrasadas do lugarejo. Ninguém tinha mais coragem de atrasar pagamentos. Em compensação, Macário ficara sem emprego, e passou a pedir esmolas àqueles a quem cobrara antes. Daí que eram muitas as pilhérias que ouvia. Morando na rua, com seu carneiro, não escolhia lugar para dormir. Era uma calçada, um abrigo qualquer, o tronco de uma árvore e às vezes ia para o matagal que circundava a vila, e lá dormia. Um dia, no entanto, Macário não apareceu na rua, para pedir esmolas. Nem ele, nem seu manso cordeiro. De princípio isso não despertou a curiosidade das pessoas. Apenas alguma criança que gostava de brincar com o carneiro andou sentindo a falta de ´jasmim´, como o chamavam quando o alisavam. Dois dias depois, uns meninos procurando caju pelas redondezas encontraram o corpo de Macário já rígido pelo tempo que havia morrido. A polícia levou o corpo até ao posto médico para ser examinado pelo doutor que nesse dia dava plantão no lugar. Quando o médico o examinou, descobriu que o cego havia sido sangrado por um objeto oblongo à modo um chifre. Depois o doutor foi ao local do achado do corpo e descobriu que depois de ferido mortalmente a vítima andara por muitos metros perdendo sangue até cair de joelhos e exangue para expirar como uma rês ferida na matança. O delegado andou procurando descobrir o criminoso pelas redondezas, mas não havia indícios de alguém matador. Conversas corriam pelas calçadas mas todas terminavam sem provas concretas. Sabia-se que não fora acidente. Ocorrera realmente um assassinato. As provas eram incontestes, uma espécie de vingança. E o carneiro, com sua mansidão, com aquele olhar triste e inocente, apesar dos enorme chifres que possuía, jamais foi visto depois da morte de Macário.

 

28/07/2009.

 

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