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Um adjetivo para Rimbaud

Batista de Lima



O adjetivo mais comum para qualificar Arthur Rimbaud tem sido "rebelde". No entanto uma infinidade de outras qualificações têm sido utilizadas para se definir sua estranha forma de vida. O poeta de extravagante capacidade criativa ou o traficante de armas na Etiópia? O amante por quem Verlaine se apaixonou, ou o garoto que mordia a nádega da menina que o assediava?

Nosso poeta ainda hoje constitui um desafio para quem quer analisá-lo para além do texto. Isso porque poesia e vida nele se imbricam, já que ele viveu poeticamente e colocou na sua poesia a sua e a vida dos outros.

Rimbaud foi um insatisfeito ao encarar a vida como um "barco ébrio". A vida como uma embarcação que apenas teve um ponto de partida, mas que não teve um domínio do timoneiro. Por conta disso chegou a assumir infinitas identidades como tentativa de entre elas encontrar-se. Encontrou-se muito mais nos outros.

Essa busca por uma identidade sempre o levou à destruição da que assumira anteriormente. Daí seu lirismo destruidor na escrita e nas atitudes, a ponto de uma das suas vítimas ser o grande amor romântico que curtiu com Paul Verlaine, "esposo infernal" com quem formou o "casal doido". "Uma temporada no inferno" seria seu livro da catarse mas ao contrário foi a culminância do seu estigma de destruidor. Sob a sombra das barbas de Verlaine ele não estava mais.

Não havia mais vítimas para sua destruição. Ele então desertificou-se. Não havia mais o que dizer. Jean-Nicolas Artur Rimbaud foi itinerante. Viajou por toda a Europa e pela África e um pouco pelo Oriente. Procurava-se. Viajou por alucinações das drogas.

Procurava-se. Aproximou-se dos mais miseráveis, dos condenados da existência. Também procurava-se. Por fim mergulhou no mundo da poesia e da prosa poética ainda se procurando. Foi então que encontrou uma dama multifacetada, a Linguagem. Explorou o máximo de suas potencialidades. Jogou nela toda sua ira poética. Iluminou-a em "Iluminações", o livro. Não foi suficiente para acalmá-lo.

Alienou-se ao código como melhor vestimenta que encontrou para sua verve. Não satisfeito, sentiu-se esvaziado e desertificou-se ainda jovem. Diante da iminência dessa desertificação, ainda praticou a alteridade como possível porto de chegada. Mesmo assim ainda se delineava um inferno contemporâneo com seus incalculáveis sofrimentos.

Mais uma vez a linguagem desgordurada e concisa era o abrigo. Acontece que de tão concisa, essa linguagem exauriu-se, também desertificou-se. A máquina do mundo mostrou-se emperrada para seu devir. Se a linguagem poética tornou-se insuficiente para seu estro, era preciso dela afastar-se. Aos 20 anos já estava desenganado pela poesia.

Outro adjetivo apropriado para definir Rimbaud é "insatisfeito". Sua força maior estava na insatisfação. Daí seu rompimento com as estruturas estabelecidas. Essa insatisfação permanecia mesmo após a ruptura operada. Então era uma insatisfação permanente o que o levava a ser rotulado de romântico. Afinal não se conhece situação em que ficasse satisfeito com alguma conquista.

Mesmo com essa sua inclinação romântica, marcada pela subjetividade, ele tenta com ela romper através de momentos de racionalidade como cultivo da forma e discussões com contemporâneos em que se recusava a aceitar o rótulo de romântico. Enquadramentos não lhe satisfaziam. Crítico de si mesmo, gênio precoce da literatura, aos vinte anos abandonou a escrita literária e nunca mais escreveu um só poema. Renegou a sociedade e o fazer poético. Dois outros adjetivos podem lhe ser atribuídos "promíscuo" e "libertino". Chegou a influenciar escritores estrangeiros e nacionais.

Aqui, Antônio Cândido e os irmãos Campos estudaram Rimbaud nos bancos universitários da USP e deixaram livros escritos sobre o poeta. Lá fora, Picasso, Baktin, Guinsberg, Nabokov, Bob Dylan, Jim Morrison e Henry Müller o estudaram. Seu poema "O barco ébrio" se apresenta como o mais estudado.

Um adjetivo que rotula a fala de Rimbaud tem sido o termo que seus críticos criaram, "rimbaldiana". A radicalidade rimbaldiana tem levado a uma purgação dos pecados de uma civilização cujo mal-estar só encontrava catarse na luta de classes e na guerra entre nações.

Era preciso elaborar um projeto poético em que linguagem e revolução estivessem atrelados em solidariedade aos revoltosos. Daí a poesia solidária de Rimbaud que, mesmo nas suas alucinações, estava a serviço de uma causa. Isso foi feito ao longo dos anos por poetas que lhe sucederam. Os hipies, os beatniks, a Lost Generation, os alucinados são revolucionários.

Toda a poesia de Rimbaud foi revolucionária. Até com as letras ele elaborou versos inusitados. Em "Vogais" ele vê o "A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul". Compara o "A" com um "enxame de moscas. O "E" com "lanças de gelo altivo, arfar de umbelas reais". O "I" ele vê como "cuspir de sangue, arcos labiais". O "U" "são vibrações de mares verdes".

O "O", como "supremo Clarin de estridores profundos". Isso é apenas uma mostra do revolver linguístico que o poeta opera. Por isso que sua poesia é visceral quando revolve a linguagem. Rimbaud expõe das palavras reentrâncias tão inusitadas que pasmam o leitor diante dos potenciais descobertos pela sua fala.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 17/01/2017.


 

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