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Três histórias sem futuro

Batista de Lima


E o boi não lambe

Gerôncio chegou vestido de treva ao armazém. No fundo do salão o negro Sabiá jazia inerte e acorrentado ao pilão deitado. Verificou que o negro estava vivo mesmo depois de tanto apanhar para confessar o roubo.

Foram várias patacas desaparecidas do baú da casa grande no domingo de Páscoa. Mas o negro carregador de água já confessara tudo. Só não soube dizer aonde guardara o tesouro.

No curral ao lado, o touro "surubim" já escavava o chão com os chifres, após dia e meio sem comer e sem beber, e passaria mais um naquele estorrico. Era preciso muita fome para enfrentar o negro. Era preciso exemplar o negro na frente dos outros.

Dia seguinte, lá pelas onze, o negro foi levado e amarrado nu no mourão no centro do curral ensolarado. Seu corpo foi untado de manteiga da terra e o touro solto de suas amarras. Era um touro de mais de trezentos quilos, esfomeado e sedento, sentindo o cheiro da manteiga que escorria com o suor do negro amarrado ao tronco.

O touro se aproximou, cheirou o corpo do negro, amanteigado, e deu a primeira lambida na barriga úmida. Foi o suficiente para que se ouvisse o grito do condenado, e o filete de sangue escuro escorria pelas pernas. Assim o touro quanto mais lambia a manteiga com o sangue, mais parecia enfurecido com tanta fome e sede. Em pouco tempo, estava o coitado em carne viva, tentando livrar-se daquela língua lâmina.

Aos poucos ia perdendo todo o sangue e a força do grito, e pendia entregue à dor, desfalecido e exangue. Os outros negros do outro lado da cerca se benziam de olhos marejados.

Na porteira do curral o patrão recebeu o delegado que chegava, avisando ter encontrado o tesouro nas mãos de um meirinho que já estava preso na cidade.

Prenúncio

Tomou café quente e pulou debaixo do chuveiro. Estoporou. Endureceu todo. Ouvido o baque, arrombaram a porta e botaram o corpo sobre a cama. Morre não morre. Olho duro, aberto, sem piscar. O médico disse logo que era caso de óbito em horas.

O primo Anastácio, rico, sestroso, perfume francês, de passagem comprada e horário marcado no aeroporto, não quis partir sem deixar marca. Caixão comprado e colocado na sala ao lado recendia verniz no jacarandá.

Dona Esmeralda aboletou-se ao lado do semimorto e começou a lhe enviar meizinhas goela abaixo. Coisa que médico não passa nem acredita. Mastruz, agrião, aguardente alemão, gema de ovo de galinha caipira, quina quina, óleo de rícino e muita reza de pé de ouvido. E o quase morto em pé com dois dias da dieta. E tome raiz de pau, canja de galinha, titela, mel de jati e marcela de porão de açude seco. No terceiro dia tiveram que esconder o caixão num quarto mais dentro. No quarto dia ele falou de manhã e disse nome feio à tarde. No quinto comeu chouriço escondido e no sexto, foi à calçada e prenunciou mais dez anos de vida. Mas andando pela casa, deparou com o grande caixão presente do primo.

Aliás, nem anoiteceu, chegou notícia da capital, do primo enfartado. Foi aí que o caixão teve sua serventia.

Dois irmãos

Ao seu redor havia um barulho de batalha. Um forte vento quente sempre antecipava sua chegada. E todos se preparavam para se completarem com ele. Era um homem, ninguém tinha dúvida. Havia histórias de heroísmo que corriam pelas ribeiras, de mortes por defesa, de lutas com grupos armados. Mas ele estava ali, uma cicatriz de quase dois metros de altura e algumas arrobas de músculos de ferro. Havia no entanto uma única pessoa que ele temia. Não era o cão que ele já havia enfrentado na encruzilhada de faca em punho. Também não era Deus para quem ele vivia armado e na espera. O seu grande temor era encontrar sua irmã Zuíla. Era a única pessoa que ele nunca vencera em luta.

Zuíla era um rumor constante na sua natureza. Um metro e meio de atrevimento montado no seu cocoruto, um trovão sem relâmpagos antecipando. Ele não resistiu de tanto apanhar da irmã. Teve que fugir para Catolé do Rocha onde dizem que continuou matando gente. Mas a irmã ficou e fincou uma cruz na encruzilhada, já antecipando a morte dele se um dia voltasse. Zuíla era um zunido feito seta, constante redemoinho, estrondo incontido, afronta e destemor. Nunca mais voltaria para as terras de suas raízes. Perdeu as heranças e as origens. Um dia ao morrer fez um único pedido aos seus, que não o levassem para enterrar na sua terra porque era ir para o inferno antes de ser enterrado, e assim foi feito.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 23/12/14.


 

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