top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Tiborna

Batista de Lima


Tudo o que restou da devastação. Tudo o que restou após tudo. Tiborna. Houve o verde do canavial. Pendões brancos mostraram a velhice das canas. Tudo chorando pelo corte do existir. Cabeças brancas. Tiborna. Retratos antigos na parede, canas cortadas, moídas. Pessoas e canas, canas e pessoas, presságios de um tudo que passa. Algodoal branco pedindo para ir embora, apanha. A morte é branca. Só a tiborna não tem cor. É uma cor que não tem cor. Um rádio velho esquecido numa mesa poeirenta é tiborna. Um couro de raposa pendurado na cumeeira para espantar morcego é tiborna. Um baú esquecido no quarto escuro, sendo comido por insetos, é tiborna. Tudo elevado ao nada vira tiborna. Tudo que nadifica tiborna.

Chico Fernandes era o caldereiro do engenho. Lutava o dia inteiro na fornalha com três caldeiras: a esquentadeira, a limpadeira e a resfriadeira. Eram três portais do inferno. Fogo, fumaça, quentura, mel quente. Na limpadeira a garapa quente criava uma borra na superfície, tiborna. Chico Fernandes de passadeira em punho tinha que tirar aquela gosma e jogar numa levada ao lado para escorrer para a não serventia, tiborna. Tiborna é a velhice da cana, é a urina da moagem. E o escorrer, último movimento do canavial. Verde ferrugem, verde metálico, é um líquido de cor vampira. Sangue putrefato do canavial, pústula, tiborna. É a velhice dos tempos, o apocalipse, o pós- apocalipse, esgoto, cloaca. Tiborna é o que restou de tudo que se quis eterno. É o ultimo grito do condenado.

Tiborna se espalha pelo subsolo do sítio e pelas profundezas da alma. Entranha intrusa. Tiborna contamina o lençol freático, desgraça a água da cacimba. Quando desativaram o engenho, ficou a tiborna do abandono pondo nódoa na memória. Quando seu Américo se cortava como penitente, com disciplinas cortantes, não era sangue que escorria nas costas, era tiborna de tantos anos de fornalha. Tiborna é o sal da terra, o protesto do canavial. Quando o velho Ford de Felinto estancava na ladeira e voltava ao sapé, como a pedra de Sísifo, era tiborna dos tempos. No dia que Dé de Joanila perdeu os dedos segurando o cepo para o velho caminhão não descer, não perdeu sangue, perdeu tiborna do ferimento.

Tiborna, vinhoto ou vinhaça, desgraça dos solos meus e teus, tudo que sobra e não obra. Tibornar é um verbo estagnado na bagaceira. Conjugá-lo é sujar-se com o hálito dos fantasmas que pernoitam nas insônias. Quando os penitentes se cortavam com suas disciplinas, nas semanas santas, não perdiam sangue, era tiborna que escorria de suas costas e impregnava as calçadas. Quando o boi era sangrado antes de virar cozido, era tiborna que tingia o chão do berro. Minha terra tem porteiras, portas d´água e cancelas e as aves que por aí tibornam, não tibornam como aqui. Minha terra tem suínos, asininos e caprinos, além de vacas leiteiras, todos eles tibornando.

Os meninos que se vão e um dia voltam homens, é o cheiro da tiborna que atiça suas saudades. Aquela coisa sem serventia gruda nos costados da alma e por mais longe que se vá, os pés ficam fincados na lama que a tiborna faz. É o pecado original dos engenhos. A rapadura se vai e se esquece da gente. A tiborna mesmo ficando na bagaceira vai com a gente para onde se vai. Não tem água que retire esse grude adocicado, nem com sabão da terra, nem com caco de telha, a tiborna não se elimina porque ela gruda por dentro, nos cafundós da alma, nos confins da memória, entre o esquecimento e a lembrança.

Os riachos nos invernos levam cercas, animais e legumes mas não levam a tiborna por suas raízes profundas. Ali naquela tiborna pintaram a história do canavial, as pisaduras dos burros e a úlcera do proprietário. Mas o que perdura mais naquele líquido que se esvai é o sonho das canas, urticária da alma, arranhando cada passo do menino bagaceiro, que o mundão levou de vez. A ladeira lá de cima para o último olhar de quem vai, é a estação derradeira para os olhos do engenho. Não adianta, entretanto, ir morar em Bogotá, fugir no navio do loide, telegrafar de Estalingrado, pois é a tiborna que fala com sotaque afornalhado.

Tiborna é o potássio do tempo, começo da corrosão, azedume das coisas. Quando meu avô envelheceu, não sabia se fora o tempo que triturou seu corpo, ou se fora a tiborna que salgara seus nervos. Quando os meninos perdiam os dentes, era o tiborna com seu poder de broca que escavava as cáries e enfeiava as bocas. Quando as tripas roncavam à noite, era a tiborna destruindo entranhas e adubando úlceras. Certa feita o açude grande arrombou-se, era o inverno de cinqüenta e cinco. Levou as cercas, arrancou as plantas, enganchou uma vaca nos galhos de uma mangueira. Levou a esperança do dono, as lágrimas das mulheres e o tibungo dos meninos pelados, mas a tiborna ficou rindo nas barreiras socavadas.

Certa feita na vila, era domingo de feira e cachaça. Foi quando o cabo Zezinho enfrentou de arma em punho, um negro de Zé Ribeiro, cambiteiro de cana. Os tiros do polícia furavam latas de gás e a faca do negro furava sacos de farinha. Querosene no chão misturado com farinha foi formando uma lama que era a tiborna protestando pela moagem que findara.

Tiborna é sangria de açude, estrume de chiqueiro e borralho de cozinha. É memória de coisas tristes que teimam em acontecer para enfeiar as alegres. É quando em seca grande o açude do pé da serra chega a secar em dezembro de tanto o sol escaldante vir lamber suas águas. Fica uma lama no porão que não é terra nem é água é tiborna em festejo.

Tiborna agora é palavra em desuso, termo aposetado nos socavões da memória. É preciso mergulhar com força nos terrenos da infância e na inocência das coisas, para sentir o gosto acre da tiborna ancestral. Depois de fisgá-la pelos anzóis do retorno, nota-se que ela circula em nossas veias instalando almanjarras, moendas, caldeiras e gamelas. Quanto mais fundo buscamos encontrá-la, mais ela se mostra na superfície da meninice que não cansamos de transportar. A tiborna jaz nos nossos ombros, na nossa pele, grudada e grudenta. Ela grita e repete que não adiantam esses banhos de asfalto, esses muros das cidades, ela é sombra que nos acompanha feito um cão acostumado.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 30/04/13.


 

3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page