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Tempo e espaço em Drummond


Batista de Lima


Uma das características da obra de Carlos Drummond de Andrade é o retorno à casa paterna. Quando esse retorno se opera, o tempo aparece como agente principal de uma corrosão que se apresenta nos alicerces do espaço poético. Esse espaço guarda compartimentos ora marcados pela claridade, ora marcados pelas sombras. Por isso que para se chegar à fazenda, ou a Itabira, o portal de entrada é a casa. Essa casa se constitui de tijolos, cimento, cal e telhas, no princípio, para depois se erguer de palavras, frases, versos e ritmo, ou seja, teto e texto são a mesma construção, apenas mudando de momento e argamassas. Quanto mais distante no tempo, a casa se deteriora na memória e necessita de mais material para sua reconstrução. Por isso que seus livros, "Boitempo" (1968), "Menino antigo" (1973) e "Esquecer para lembrar" (1979) são os que mais se empenham no retorno do pródigo.

Drummond opera uma verdadeira arqueologia nesse mergulho na ancestralidade. Ele escava a memória, vai às profundezas da casa, camada por camada, revira o monturo das lembranças, onde pairam os cacos dos elos que ligaram gerações e bens de raiz. "Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara./ Sem uso,/ ela nos espia do aparador". Cada camada escavada nesse monturo apresenta cacos representativos de um tempo, de uma geração. Quanto mais profunda essa escavação, mais corroídos estão os objetos representativos das antigas personas.

A partir do ingresso do poeta nessa casa ancestral, outras casas vão surgindo dentro da grande casa. Surgem os armários, as caixas, os baús, as malas, os cofres, os potes. São casas dentro da casa. São tetos dentro do teto. São textos dentro do texto. O poeta não quer, no entanto, abrir essas pequenas casas ali postas. Afinal elas são grandes casas dentro da casa, porque estão fechadas. Estarem fechadas é estarem infinitamente cheias, pois a imaginação as preenche com infinitas possibilidades de conteúdo. Entretanto, abri-las é esvaziá-las, mesmo estando repletas. Abrir algo fechado, mesmo estando cheio, é matar a imaginação.

Alguma coisa fechada retém a sombra. Por isso que o espaço de Drummond se divide entre real e subjetivo. A claridade dispensa profundidades. É tanto que o alpendre não tem fantasmas. Os fantasmas se recolhem nos ambientes mais escuros. Também os segredos e os interditos ficam à mercê das sombras. O quarto do casal, alcova ou venustério, é o local mais escuro por ser o mais interditado. É ali onde Eros mais trabalha e onde Tânatos se refestela. Afinal, na cama, o casal ama e o indivíduo morre. Eros constrói, Tânatos destrói.

Esse espaço sombrio em Drummond é onde se instala a verticalidade. O útero materno é o compartimento mais escuro e mais íntimo da casa. Isso porque o interior da casa e o interior da mulher se imbricam de tal forma que um termina por ser a continuidade do outro. O homem constrói uma horizontalidade de fora para dentro, marcada pela claridade. A mulher atua mais na construção de uma verticalidade, marcada pelo sombrio, de dentro para fora. Quando os dois se encontram surge a centralidade, onde o fogo da paixão acende a fogueira ou lareira simbólica que instaura o lar. Nesse lar, a família se constitue, a memória se constrói.

O tempo corrosivo, no entanto, está de espreita. Está pronto, a mando de Tânatos para corroer o ambiente dessas vivências. "Ai como morrem as casas! / Como se deixam morrer! / E descascadas e secas, / ei-las sumindo-se no ar". É aí que o poeta retorna. Retorna como os grandes mestres da literatura, no afã da reconstrução desse mundo antigo. Sua poesia escava na memória, as fundações para o soerguimento dessa construção reformadora. Carlos Drummond de Andrade, dessa forma, comprova que a melhor literatura é a que busca na memória os caminhos do retorno a um paraíso perdido.

Nesse retorno ao paraíso perdido onde a casa se instaura, a mesa é a centralidade. É nela que se reúne toda a família. Sombra e claridade se mesclam em temperatura tépida onde os cheiros é que reinam. Os interditos dão lugar a uma assembleia, a um parlamento em que as questões se dão as mãos para se porem em discussão. A mesa é onde ocorre a reunião plenária da família. Terrinas, travessas, pratos e talheres são apenas coadjuvantes de um congresso em que as questões familiares se resolvem e se põem gravadas pelos ouvidos da mesa. É essa mesa que traz a ancestralidade para os terrenos da memória. Muitas vezes os sabores que refestelam, amenizam os humores diante de decisões que serão tomadas. A mesa intermedeia as questões.

O silêncio às vezes é cultivado pela mesa da casa desativada que é para a ancestralidade saborear o cordeiro sem espantá-lo enquanto continua pastando na roça. Ali, naquela mesa, as gulas foram refreadas, os rituais de alimentação foram obedecidos e os filhos marmanjos na frente do patriarca pareciam as crianças que um dia foram. A mesa retém toda essa atmosfera gravada nas suas reentrâncias de cedro. A árvore que foi um dia, tem agora tanta história para contar que não se arrepende de ter virado madeiro. São tantos sabores que lhe enfeitaram a pele que ela maternalmente ainda continua alimentando comensais antigos pelo paladar da memória.

Ao sair das visitas, nesse retorno, os pratos amarelos de antigamente, conservados ali perto, olham pelo vidro embaciado da cristaleira e confabulam com a mesa e as cadeiras. Contam entre eles histórias de grandes acepipes, guloseimas disputadas com avidez de fomes adolescidas que por ali passaram arrastadas pela máquina desenfreada do tempo. As cadeiras continuam ali ao lado da mesa, carregadas de anos almofadados. E o poeta não fica alheio diante de tudo isso. Drummond divisa nesse cenário uma infância que um dia o transportou e que agora ele transporta de mãos dadas para tentar dessa forma sustar o desenfrear do tempo.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 27/08/13.


 

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