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Tempo de doações

Batista de Lima



A quem interessar possa, tenho muito para doar. A começar pela primeira segunda-feira de agosto, com todos os seus agouros. Toda sexta-feira treze podem também levar, e a hora terceira da tarde, momento mais escolhido pelos que resolvem morrer. Mas tenho outras coisas para doar. Também posso doar as rugas, os cabelos brancos e o mau humor das noites de lua cheia. De contrapeso, podem levar a preguiça dos feriados, o casamento da raposa e os pés de galinha plantados no poleiro do rosto. Tenho ainda para doar o trânsito da minha cidade nos fins dos expedientes, e o ronco dos aviões, já que moro por baixo do rumo das suas rotas. Ah! Sim, podem levar as músicas baianas e os forrós estilizados que explodem do carro de som de um mancebo que mora nas minhas redondezas. Quando o inverno chegar, podem levar os trovões de estalo e as goteiras do telhado, junto com o alagamento das nossas ruas centrais e as infiltrações do teto. Outras coisas que não faço questão de tê-las, são meias brancas ou vermelhas, sapatos que apertam, televisor preto e branco sem imagem, cuecas samba canção e porta-retrato sem retrato, como não os tenho, não estão para doar. O que tenho e não quero mais, é um livro de auto-ajuda que ganhei no aniversário, um acróstico de dez versos com meu nome pendurado, uma cotoronga de pescar, uma rede que virou tipóia, uma tipóia que virou fianga. Com eles podem ir algumas palavras que mofaram por desuso: convescote, reclame, prospecto, mascote, alvíssara, caritó, cafundó, supimpa, batistério, gastura, garapa e outras que, por timidez, pediram-me para não se revelarem. Tem também uma coleira de um cachorro que nunca tive, que de tão velha de guardada, não há quem queira levar. Tenho para doar também um calendário do ano que passou e alguns números de sorte para jogo de loteria. Ao buscador que vier, pode levar um verso de pé quebrado de um poema de mal-dizer, uma moagem que passei no engenho, cortando mel. Tenho ainda uma lata velha, cheia dos gritos de um vizinho que brigava com a mulher nos tempos da ditadura. Essa pode ser levada sem pedido de licença e sem notícia do destino. Estão embalados para doação, um isqueiro sete lapadas, precisando de setenta e sete, e algumas pedras da lua, que um espertalhão me vendeu, dizendo que vieram em foguete de americano voar. Junto pode levar também, um par de asas de anjo, usadas em coroação, nos tempos da missa em latim. E por falar em missa, boto junto no pacote, um velho par de sandálias, feitas de papelão, com que fiz num mês de maio, a primeira comunhão, com o padre Alzir Sampaio. Como não sei onde guardei, muita parte disso tudo, deixo para doar depois, junto com os bichos-de-pé e as frieiras que matei, em muitos punhos de rede. Quem vier pode levar, algumas lembranças que tenho, de lugares onde não fui e de tesouros que nunca tive. Mas uma coisa fica comigo, são os sonhos que agora tenho e aqueles que ainda vou ter. No entanto, é bom que se diga, que tem um cidadão bem acolá, que certa vez me olhou de banda, pode levá-lo de vez, na carroça recolhedora, das coisas que não prestam mais. Mas o resto do povo todo, pode deixar onde está, pois foi presente bem dado e é prenda dos meus guardados. Certa vez em Canindé, comprei um rádio de pilha, que de tão feio que era, não conseguia dar o prego, que de tanto gritar estridente, nos meus e nos outros ouvidos, escondi onde não sei. Em sua companhia, está um retrato do Ferroviário, campeão de sessenta e oito. Como não sei onde estão, nem faço questão de saber, deixo que o interessado procure, do sótão ao porão da casa. Na mesma situação, está uma disciplina afiada, que o velho Arlindo Geraldo me deu numa antiga Semana Santa, em que ele pedia esmola, vestido de penitente. Certas coisas não posso doar porque delas já me desfiz, são cinzeiros quando não fumo, loção para o após-barba e um quadro sem assinatura que de tão feio e sem história, a parede me devolveu. Não posso doar a ninguém, minha coleção de giletes, guardadas para cortar unhas, nem as lembranças que ainda tenho do tempo de eu menino. Desse tempo que só vai, guardo antiga baladeira, guardada em saco de bilas, não dou nem posso emprestar, é de defesa pessoal em tempo de paz ou de guerra. A quem interessar possa, estão prontas para doar, algumas dores de dente, ao beber água gelada, uma cabaça de colo, que me deram de presente, numa festa de folclore e duas costelas quebradas do tempo do futebol. Certas coisas não se doam como aquele olhar de mistério, da moça da procissão, num dia de Corpus Christi, ela do Santa Tereza, eu do Sagrada Família, um quase padre se perdendo, uma freira desperdiçada, nas pedras toscas do calçamento das ruas puras do Crato. Outro olhar que sempre guardo, é do pai da minha mãe, que de tanto procurar chuva, nas lonjuras do nascente, seu olhar cavou na serra, uma baixa onde o sol faz o dia nascer mais cedo. Também quero guardar no sempre, aquele meu São José que Mangabeira matou, e o São Sebastião, todo flechado e amarrado, em nove noites novenárias, com fogos de Mané Vieira e acordes cabaçais. Quero guardar ainda, a velha praça do Liceu e aquele por do sol que a ponte metálica espreita. Finalmente quando aqui chegar a carroça dos doados, pode levar aquele terno que só é para votar e que de tanto fazer política, ele já quase vota sozinho. Tem um pé de urticária nascido lá no quintal é próprio para dar choro em menino maluvido. Pode levá-lo consigo junto com uma mangueira velha, nascida e envelhecida que vive estabelecida na Câmara Municipal, para atrapalhar o tráfego, feito vereadora, eleita sem tirar voto. Muita coisa ainda tenho para ser levada agora, mas tenho que guardar por enquanto para alguma precisão maior. São coisas que de tanto usar, roubaram das minhas mãos, as impressões digitais. São coisas que de tanto eu ver, ganharam dos meus tristes olhos, as vantagens do olhar. São coisas que não podem ir, porque tenho que ir com elas, e a essas alturas do dia, ainda me consigo mover, pronto para doar coisas que tenho, mas sem poder doar por enquanto, o resto de tudo que sou.

 

27/01/2009.

 

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