top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Sonata para ninar soluço

Atualizado: 18 de dez. de 2020

Batista de Lima



Quero te confessar que me assombro quando me encontro com este outro que transporto. Tentei entendê-lo mas pressinto o perigo de encontrá-lo demônio em vez de anjo. Prefiro então conviver com esse outro, encabrestando-lhe os arroubos e fustigando-o na lerdeza. Não quero desvendá-lo pois já vi nele meu pai, já te vi nele esculpida e uma multidão muito além do meu conhecer. Se um dia eu descobrir os mistérios que carregas, pintarei o olhar que teus olhos me sonegam. Já encontrei serras longe, lagos tristes e rios caudalosos, escorrendo de teus olhos, mas eles não me dizem os motivos porque sangram. Eles não mostram a origem dos suspiros e do gesto de improviso. Rastreio tuas superfícies, mas não prospecto as profundezas que transportas. Sei que estou lá nos teus oceanos, sem rumo, numa deriva de náufrago. Não posso pintar as ondas se não conheço o mar. Mas se um dia descobrir as razões dos peixes, eu pintarei os cardumes. Se um dia eu descobrir a razão do meu choro pintarei os contornos da dor. São tantos os motivos para este soluço sem jeito que termina por não haver motivo algum para este perambular por abismos. Quero te confessar que me assombro quando me encontro com este outro que transporto. Tentei entendê-lo mas pressinto o perigo de encontrá-lo demônio em vez de anjo. Prefiro então conviver com esse outro, encabrestando-lhe os arroubos e fustigando-o na lerdeza. Não quero desvendá-lo pois já vi nele meu pai, já te vi nele esculpida e uma multidão muito além do meu conhecer. Não sei o que faziam em mim, não sei o que eu fazia neles. Não há mais tanto tempo para mirar distâncias nem tantas pernas para a marcação dos passos, mas tenho guardado por aqui algumas histórias sem fim, que fim não quero dar. Há muito ainda a retirar desse poço profundo e sombrio onde estão guardadas as joias do rei e os segredos da rainha. Malmequer que bem me quer não adianta tanto assédio se as boninas me elegeram. Dia desses acordei com grande saudade do mundo e logo no portão de saída havia muitos outros em oferta de promoção. Foi aí que verifiquei que, às vezes, mundos são criados para que este nosso seja esquecido. Mas não há como esquecer a chuva, nem a flor do maracujá nem a lágrima que se inventa quando convencer é preciso. Se um dia eu descobrir porque estou aqui, vai ser mais fácil acreditar nas razões do esperar. Enquanto isso, é preciso glorificar o nascer do sol e me encontrar no entardecer. Se o sol nascente me contasse a volúpia dos seus sonhos noturnos, eu saberia desvendar o lirismo das manhãs. Mas há nuvens nublando o horizonte dos sonhos e escondendo a pressa do sol encoberto, em produzir entardeceres. Não quero a claridade que limita, mas a sombra que esconde. Meu mundo se alarga quando não vejo e se estreita quando avisto. Aprendi as lições do dia, mas não me eduquei nos mistérios da noite. Quando garoto, e andava à noite em caminhos de retorno, fechava os olhos e não errava os passos. Passarinho, precisava os passos, construindo galhos, mas ruflando as azas sem projetar o pouso. Certas vezes subia a serra para pegar o céu, mas o céu logo pulava para mais distante serra. E muitas serras tenho construído e muitos céus em miragem se tornaram. Por isso tenho extraído lições dos potes, principalmente dos que porejam, projetando para o mundo de fora o que o de dentro extrapola. Não sei quem escreveu o livro da vida nem por que vive me pedindo a assinatura. Quando dei por conta de tudo, quase tudo já estava determinado, sem curva e sem atalho. Sem me pedirem opinião, colocaram a manhã antes da tarde e a tarde antes da noite. Não me consultaram sobre a posição das três marias nem sobre as cores do arco-ires. Certa feita um pássaro enorme pousou no meu telhado me trazendo as cores da lua. Nunca mais me senti o mesmo pois guardei daquela ave suas asas de tantas léguas. Outra vez vi um açude no momento do arrombo. Pela ferida enorme da parede secular vi a alegria sem par das águas que se libertavam. Ali estava escrito que nada é para sempre. Se eu soubesse onde se esconde a raiz da chuva, eu pintava a voragem das águas e esculpia as curvas do relâmpago anunciando trovões. Se eu soubesse onde se esconde a palavra certa, escreveria o poema da perfeição, mudaria a face do mundo e poria o sol a obedecer à lua. Mas não sei em que ninho a metáfora pôs seus ovos, nem em que teto o grande texto se agasalhou. Triste ironia é essa de possuirmos botas de sete léguas para caminhos de poucos passos, possuirmos tudo para bem dizer, mas que cavalgue palavras que não criamos. Quando Alonso foi dizer do seu amor por Marina faltou a palavra certa e o amor pareceu menor. Por isso que as palavras que aqui me chegam vêm cansadas de cativeiro ou exaustas de tanta lida. Se eu soubesse por que existo, daria rumo para meus passos e prumo para o pensar. Mas essa incerteza esculpida no meu entorno não anuncia piso falso nem areia movediça. Esse caminhar por sobre a pele de um ovo não sabe a hora que o abismo abrirá seu olho. E o anjo da guarda, no seu envelhecimento, mais cochila que vigia. É preciso então deixar escrito o assombro de cada instante. Se eu descobrisse as razões do outono, eu cantaria o bailado triste das folhas que caem. Mas não me ensinaram a cultivar a tristeza como se alegria fosse. Só me deram lições de sorriso e me ocultaram os contornos do choro. Só me deram lençóis para umedecer de lágrimas e multidões para ofertar o riso. Quero meu direito de ser triste. Triste pela manhã, triste à tarde e mais triste à noite. Afinal tenho aprendido mais com topadas que me arrancam as unhas dos pés que com os presentes de aniversário. Tenho aprendido mais com meus amigos medrosos que com os valentes de toda hora. Minha mãe me ensinou mais com seu silêncio do que meu pai com os seus gritos. Quanto ao pouco que consigo escrever, são soluços que vêm da alma, pedindo para virar sonata.

 

15/12/2009.

 

5 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

コメント


bottom of page