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Singularidades de um solitário

Batista de Lima


A solidão possui suas singularidades. Uma delas é a fertilidade que ela retém para a frutificação do lirismo. O diálogo primeiro do criador confessional é consigo próprio. Nesse diálogo, o eu lírico transborda. Por isso que o ponto primeiro de uma trajetória poética geralmente está no lirismo, passando em um segundo momento para o dramático e terminando com o épico. Não é pois surpresa que o jovem poeta Renato Pessoa, nesse seu segundo livro, "Solidão singular", continue lírico, com seus tumultos abissais vindos à tona. Ocorre então um renascimento em que o verdadeiro Renato se revela íntegro e purificado pela palavra.

A palavra é o veículo principal de transporte da fala do poeta. Essa fala apresenta a metáfora como o ponto limítrofe em que termina a prosa e começa a poesia. A sua preocupação é revirar a linguagem, e o tempo vem agregado à morte. A corrosão utiliza o tempo como seu agente mais atuante. Esse seu comportamento desemboca em um existencialismo que o torna solitário. Nesses momentos "a vida cansa e é pouca", mas a palavra é salvadora.

No delírio das palavras, ele promove a febre do idioma e salva o destino, que considera torto, com a inutilidade da poesia. Daí o desencanto com que vê o mundo, e sua necessidade de alinhar palavras em mutirão pela sua salvação. Não é pois de se admirar que sua marca registrada seja um lirismo pungente que lhe dói e lateja no leitor. Conflitos não lhe faltam, abismos não lhe amedrontam, contanto que tudo seja sentido e que sentido lhe seja dado, afinal a vida é uma embarcação cujo leme é a palavra. Dessa paixão pela palavra é que brotam seus metapoemas.

Seus questionamentos sobre o poema são matérias poéticas. "O poema é um pássaro/ que galopa no ar/ sem sair da terra". Nessa linha metapoética ele trata o poema como continente de "grandezas vazias" e "horas puídas". Depois chega ao desejo de que a poesia o salve da verdade, mesmo concluindo que "a poesia também é triste, / porque permanece". Essa desesperança existencial do autor coincide com a teoria que pratica na sua docência de Filosofia. Existencialista, sua poética é uma pregação do efêmero do existir. É consciente dos limites de nossa porção sensível, por isso apela para a poesia para extrair de sua inutilidade um fio de razão para continuar sendo.

Para valer a pena sua peregrinação pelos meandros verbais, ele apela para a companhia sombria e enigmática de Fernando Pessoa e para a pedridade de João Cabral. Essas intertextualidades comprovam suas leituras poéticas, seu aprendizado de composição. Entretanto pode-se considerar como influência principal no seu fazer poético, a peregrinação que enceta pela estética do traste como se aprendiz fosse das transfigurações do poeta pantaneiro Manoel de Barros. Com essas boas companhias inspiradoras, Renato Pessoa vasculha inferno purgatório e céu em busca de razões para estar no mundo.

Um tema recorrente na sua poética continua sendo a morte. "A morte/ desalenta as incertezas, anoitece todos/ os medos". Mesmo assim, "a vida dói mais". Por isso que ele chega a afirmar: "Já não caibo na morte". Só, pois, muito sofrimento para que a vida doa mais que a morte. Talvez o poeta tenha a mesma impressão sobre a morte que possuía Mário Quintana, para quem a morte não lhe amedrontava, mas sim o morrer. É bom, no entanto, não esquecer que o principal agente provocador dessa morte é exatamente o tempo corrosivo.

Para abrandar essa corrosão o poeta se utiliza das mais variadas metáforas escudeiras. São "afagos hibernais", "relvas alpendradas", "febre no idioma", "gulas incendiárias", "algazarra dos descabidos", "piedade dos vaga-lumes", "febre de cristal", "gerônios acesos", "odes ancestrais", "artérias do tempo", "azul dos abandonos" e "delírio dos rios". Parece até que a abundância de metáforas utilizadas seja uma carapaça para recatar um eu que teima em se revelar por completo, mas que ainda possui reentrâncias irreveláveis.

As metáforas de Renato Pessoa apresentam-se até em definições que surgem ao longo dos poemas. Por exemplo: "os arquipélagos germinam as primeiras insônias", "as catástrofes, opiladas, descendem dos bastardos terremotos", "tristes são os dias sem poesia", "eterno é o que a língua não profere", "indizível e passageira é a mão que segura todo adeus", "a perfeição é uma coisa terrivelmente inútil" e "todas as estações levam ao mesmo destino". Observa-se, desse modo a presença de uma angústia que o poeta tenta encobrir com a metáfora.

Por fim é bom acentuar os momentos mais reveladores em que Renato Pessoa se posiciona no mundo como levando a vida numa bandeja. "Sou um fogo/ incendiado/ pelo avesso(…) minhas mãos/ não alcançam o que sou(…) o que sou não cabe/ na xícara, na galáxia / na mulher/ infiel.(…) Sou descomprido em léguas e alargado em palavras (…) Não creio nas coisas absolutas(…) Em vez das portas/ desejos as frestas(…) Eu inabito-me". Essas revelações poéticas são suficientes para se elaborar um esboço biográfico do poeta que se encastela na palavra para praticar a resistência. Sua fala é sua vida. A inútil poesia é sua salvação. Daí que desenxergando o que está posto ele conclui que desdizer principia.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 04/09/12.

 

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