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Sinais do tempo

Batista de Lima



Parou o carro ao sinal vermelho e o limpador já se acercou com a flanela molhada na mão esquerda, limpando o vidro que estava sujo. Na mão direita conduzia a maquininha para passar o cartão, acompanhada pela pergunta: "- Crédito ou débito?". Ainda deu tempo explicar que esse era o modo de pagamento porque os motoristas sempre alegavam que não conduziam dinheiro em espécie. Agora eles não teriam desculpas. Eram então mais duas opções de contribuir para um pai de família com cinco criancinhas para sustentar em casa, e a mulher quase sempre doente. Diante do drama e da tecnologia inovadora, não teve como escapar.

No mês de agosto, mês de águas já baixando, Mestre Paulo Renovato, aposentado dos serviços de fornalha, saiu do Engenho de Dentro e foi conhecer um criatório de peixes de cativeiro. A marmota, como ele chamava, carecia de viagem de carro para quem lá quisesse chegar. A fobica de um compadre o transportou como príncipe aos mandos dos peixes presos. Foi ali, em plena luz do dia, que o mestre de rapadura viu um moleque de seringa em punho vacinando peixes de gaiola para crescimento maior. A partir de então Paulo Renovato abominou peixe no seu prato.

Última vez que foi ao seu torrão, tinha missão dos irmãos de botar sentido numas vaquinhas que o pai deixara como herança. Eram bichinhas peduras, dessas que mal carregam o chocalho de tão pobrezinhas de carne e leite. Importante era saber que o cuidador delas era o jovem vaqueiro Damião Fernandes, neto do Damião Vaqueiro, cultivador de jibão e derrubador de boi. Chegou por lá com ouvido de oitiva, ouvindo barulho de moto em vez de aboio langoroso. Era Damião Neto, tangendo as vacas de moto, para receber logo sua ordem de vender aquelas ossadas que teimavam ainda em andar.

Chegou carta de lá, carregada de selos tristes, dizendo que Manoel da Mescla, com terras vizinhas às suas, convalescia de dores no peito, que o doutor desenganara. Como filho mais velho do maior amigo dele, foi visitá-lo na cama carregada de gemidos. Conversa vai, conversa vem, o calor virou culpado das dores que ele sentia. Era o calor do inferno que entrava pelas janelas e incendiava o colchão da cama. O velho Manoel botou na cabeça que o culpado de tudo era o ar refrigerado que os ricos tiravam do mundo para esfriar suas casas.

Havia nas bandas de lá alguns produtores de fumo. Acontece que o fumo não era bom. Não ficava totalmente preto. Não encorpava. Havia, entretanto, um velhinho produtor, de nome Doca de Sula, que entre tanta baganha sem sustança produzia saboroso fumo. Até os outros produtores só fumavam o produto dos pastos de seu Doquinha. O velhinho não dava a receita da boa qualidade. Mas quando estava para morrer confessou a um amigo que enquanto os vizinhos curtiam o fumo com água e sal, ele apenas urinava no seu produto. Era a receita certa.

Coronel Manoel Vicente por décadas de luas cheias e encomendas de bacamartes tinha correspondência mensal com filhos que estudavam na Capital Federal. Eram cabogramas que iam e cabogramas que vinham. Quando explicaram a ele que era um fio comprido que vinha por baixo d'água e cortando floresta escura ele quase não acreditava. E ficou mais curioso quando soube que atravessando os mares os fios levavam notícias. Agora quase senil, ficou pasmo e desentendido, quando os netos lhe contaram que uma tal fibra ótica está fazendo os tais percursos por baixo dos oceanos. Não entende Manoel Vicente porque novos fios nos mesmos caminhos que lá estavam.

Esse mesmo Manoel Vicente, depois que chegou aos oitenta, botou na cabeça que estava doente, mesmo com saúde estando. Era "tronco de amarrar onça", como dizia dona Bilinha, sua mulher, a quem vez por outra ele incomodava lírico nas insônias da madrugada. Durante o dia ele sempre inventava uma ida à única farmácia do lugar. Era farmácia nova com medicamentos de primeira linha. Acontece que a cada dia o velhinho pedia algo que não encontrava. Era Cibalena, Óleo de Rícino, Aguardente Alemão, Lactopurga, Capivarol, Emulsão Scot, Biotônico Fontoura e Postafen para sua Bilinha aumentar de carnes.

Para aumentar a frustração de seu Manoel Vicente, os netos que vieram do Sul em curtição de férias não eram como os meninos antigos. O Avô contou histórias de lobisomem, desencantou alma penada, arrancou botija na sexta-feira à meia noite, contratou penitente encapusado, mas os meninos "nem te ligo". Ficavam todos com suas maquininhas na mão, vendo filmes de terror, com gente serrando gente, monstro destruindo cidades, japonês furando olho em luta de karatê. Finalmente, o velho Manoel Vicente voltou a costurar saco, tecer redes de pescar e procurar tanajuras no terreiro, enquanto conversava só.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 31/01/2017.


 

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