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Samurai malandro


Batista de Lima


Leminski caiu na vida poética quando falar de Mao fazia bem à poesia. Iniciou-se, como outros das províncias deste Brasilzão, na geração mimeógrafo, cujo avanço primeiro foi chegar à "Xerox generation". Como todos os independentes, navegava pelos correios de Curitiba para o mundo. Ali, na capital paranaense, veio ao mundo em 1944; de lá, se foi para sempre em 1989. Pensam que se foi, mas Curitiba é tão leminskianamente poética que ele é permanente, assim como o vampiro narrador Trevisan. Escritor no Paraná é plantio. É o que aparenta. Paulo Leminski completou-se aos 24 anos quando Alice dilatou encantos em seus abismos.

Samurai malandro é um dos polos das dicotomias que o compõem. É que sendo faixa preta de judô e com bigode e braço de lutador, sua luta maior foi com a palavra. Verdadeiro estripador de estruturas arcaicas da verborragia declamatória de um certo braço da poesia brasileira, Leminski sempre foi mais sensibilidade que razão. Sua astúcia em tocaiar palavras oscila entre emoção e rigor, leveza e erudição, o popular e a vanguarda. Por isso que há hoje toda uma geração de seguidores leminskianos. Urbano, seus poemas são curtos, como feitos enquanto o semáforo está vermelho, mas para serem lidos e pensados por toda uma vida. Paulo Leminski é encantadoramente radical.

Seu radicalismo poético está no desmonte das estruturas verbais. Ele brinca seriamente de cirandar palavras. Do concreto ao poema piada com passagem demorada no lírico, o poeta sabe adestrar sintagmas e criar paradigmas. O seu poema "O assassino era o escriba" é uma brincadeira tão séria que se torna um texto didático, propício à aprendizagem gramatical. "Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente. (...) Era possessivo como um pronome". É difícil, portanto, existir alguma matéria poética que não tenha servido de argamassa para a construção de seu monumento literário. Imagino um poeta desses se tivesse durado outros quarenta e cinco anos.

Mesmo tendo partido tão cedo, vítima de cirrose hepática, hoje sua obra está cada vez mais conhecida e reconhecida graças também ao empenho da família em promovê-la. Alice Ruiz, sua companheira e parceira por 20 anos, deu-lhe duas filhas, Áurea (42) e Estrela (32), além do Miguel, falecido aos 10 anos. Os dois últimos anos de vida, Leminski passou separado de Alice, mas sem romper a parceria poética. O alcoolismo o levou à cirrose e à separação, mas não destruiu o afeto entre os dois e as filhas. É Alice quem promove "Toda Poesia", sua obra completa publicada este ano (2013) pela Companhia das Letras, e há meses entre os mais vendidos livros no Brasil.

Leminski iniciara sua carreira literária em 1976 com a publicação de "Quarenta clics em Curitiba". A editora foi a Etecetera e os poemas vieram ilustrados com fotos de Jack Pires. Nesse início ele já vaticina: "Uma vida é curta / para mais de um sonho". Ainda com uma temática multifacetada ele vai mais além: "Domingo / canto dos passarinhos / doce que dá para pôr no café". Logo em seguida veio o lançamento de "Caprichos e Relaxos". Era o ano de 1983 e o livro cativou toda uma geração. A editora já foi a conhecida Brasiliense. O interessante desse livro é que aparenta uma antologia de todos os poemas de Leminski até então, inclusive suas produções independentes, que circulavam pelos correios. Ali, além do seu primeiro livro, estavam "Polonaises", de 1980, e "Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase", também de 1980. Eram textos que já havíamos lido nas nossas trocas de correspondências poéticas.

Nesses relaxos Leminski já apresenta alguns caprichos. Lembro-me bem que não era de seu feitio frequentar aviões, nem ouvir lenga-lenga de autores encaracolados de empáfia, habitantes do eixão maravilha. "Quando eu tiver setenta anos / então vai acabar esta adolescência". Nunca acabou, e ainda continua pelos seus seguidores. Para isso ele afirma ser um rio de palavras e que tem uma porção de corações, infernando o peito. Mesmo assim Leminski apareceu com novidades poéticas em "Ideolágrimas" e "Contos semióticos" que o aproximou dos concretistas paulistas. Os irmãos Campos e o Décio Pignatari surpreenderam-se com suas criações imagéticas. Isso fez com que um outro Leminski se espalhasse pelo Brasil com uma fortuna crítica se cultivando nos corredores da USP.

Pode-se dizer que suas intertextualidades têm a raiz principal em Oswald de Andrade. Vem dele o aprendizado do poema piada, dos trocadilhos, dos jogos de palavras. "Haja hoje para tanto ontem". Essa frase e outras mais apresentam um Leminski botando o leitor para pensar. Há uma filosofia leminskiana. Outro tipo de poema para pensar é sua incursão pelo haikai. E foi justamente aí onde ele mais se aproximou poeticamente de sua amada Alice Ruiz que é excelente haikaista. Alice tem publicado em torno de duas dezenas de livros entre poesia e prosa, mas seu desempenho mais instigante está nos haikais.

Em 1987 Leminski viu sua última obra publicada, afinal o que veio depois foi póstumo. Foi nesse ano que a Brasiliense publicou "Distraídos venceremos". São poemas mais longos, mais existenciais e com tiradas filosóficas. Mais urbano e pessimista, vez por outra, ele discorre sobre a arte poética: "Fazer poesia / dar ordem a um exército, / para conquistar um império extinto." Mesmo semiótico, em alguns momentos, quando lembra símbolo, ícone e índice, paradoxalmente é Brasília que ela desanca, "uma cidade sem ruínas". Nos poemas desse livro há uma certa tristeza que se esconde nas entrelinhas. "Você nunca vai saber / quanto custa uma saudade / o peso agudo no peito / de carregar uma cidade / pelo lado de dentro".

Paulo Leminski é poeta. Desde a prosa poética surpreendente de "Catatau", mesclou poesia com filosofia, vanguarda com tradição e erudição com desbunde. Provocou e impressionou aqueles para quem pouco ligou. Surpreendeu da várzea à USP, dos poetas marginais aos concretos, do tatame á cátedra e saiu ileso. Arrebanhou para seu time de admiradores nomes como Haroldo de Campos e Leila Perrone Moisés, do mundo universitário. Conquistou ícones da canção como Caetano Veloso e Arnaldo Antunes. Foi abalizado pela crítica especializada de gente como José Miguel Visnik. Os que o hostilizaram foram a nocaute. Hoje está aí quebrando a cabeça dos que querem rotulá-lo: arqueiro zen, Rimbaud curitibano, punk parnasiano, dadaísta clássico, samurai malandro e beatrik caboclo. O que importa é que Leminski é brasileiríssimo, o retrato bem acabado de uma geração que queria respirar e se entender e que para sobreviver era preciso ser ao mesmo tempo malandro e samurai.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 30/07/13.


 

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