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Révia Herculano e a sagração do solo

Batista de Lima


O solo seco é mais fácil de ser sagrado com suor e sangue. Mistificado, dele brota uma força que vai além do que potencializa o arcabouço físico do homem. Correto, pois, dizer que a fé move montanhas. E foi montado na fé que o povo de Juazeiro do Norte sagrou seu chão e nele se filiou. O Padre Cícero foi o pastor condutor dos fiéis que para lá se dirigiram como se chamados fossem a uma terra prometida. E aquele verde vale tem aspecto propício, de sua fisiologia a uma aura energética que dele frui, para atrair um povo escolhido para a consumação épica. Foi lá que o pastor cativou suas ovelhas e a religiosidade instalou-se, tornando-se centro de uma das maiores romarias do Brasil.

Esse fenômeno juazeirense tem chamado a atenção de vários escritores, o que tem provocado o surgimento de uma vasta bibliografia sobre o assunto. Daí que ao surgir algo novo sobre o tema, os romeirólogos acorrem na ânsia de encontrar novas versões sobre o acontecido naquela cidade.

É o caso desse livro de Révia Herculano, que traz em versos a saga da beata Maria de Araújo e seu episódio da hóstia que virou sangue. Esse polêmico acontecimento é tido por uns como embuste, e por outros como um milagre. É difícil, pois, encontrar algum livro isento de tomar partido diante desse grande acontecimento para a história da fé que envolve a população juazeirense.

No caso desse livro de Révia Herculano, que vem com o título "Solo sagrado", da Editora Premius, não há novas descobertas sobre o fenômeno. O que ocorre é a transformação de tudo o que envolve os acontecimentos em arte. É uma nova forma de narrar. Daí, pois, a roupagem épica que envolve seu texto, além de uma cadência de ladainha que dá teatralidade ecumênica a sua poética. A autora pesquisou, indo a campo e revirando alguns monturos em que aqueles acontecimentos jazem. Sua forma de ver esse paul de fatos históricos é que interessa. Juazeiro é o grande milagre, como a própria árvore homônima que resiste às secas com seu verde buscado nas profundidades da terra. Assim é a resistência da Meca do Padre Cícero.

Juazeiro teria sido a Canudos do século XX, não fora a habilidade do Padre Cícero em arregimentar forças para o seu entorno. Conseguiu, com o Pacto dos Coronéis, congregar todos os potentados do Cariri para que se unissem na defesa de Juazeiro. Conseguiu também que em todo o desenrolar desse mesmo século e até hoje que a cidade tivesse um representante ou mais na Câmara Federal.

Chegou à Vice-presidência do Estado quando mais a cidade corria perigo. Arregimentou os romeiros em torno da defesa da sua urbe. Colocou a seu serviço um alter ego que resolvia episódios que poderiam atingi-lo na aura que o cercava. Floro Bartolomeu foi, portanto, de grande significação estratégica para a sobrevivência da cidade.

Esse livro da Révia Herculano põe em cena os principais personagens envolvidos no milagre de Juazeiro, o bispo Dom Joaquim, o padre Manoel Cândido, José Marrocos, Maria de Araújo, Padre Ibiapina, o beato José Lourenço e Lampião. Até o episódio do "Boi Mansinho" aparece em cena.

Com esses atores principais e milhares de figurantes romeiros, desenhou-se a saga com muito suor, sangue e oração. O cenário mais evidenciado é o Caldeirão destruído como uma Jerusalém em escombros. O messianismo com os cantos lúgubres dos penitentes em suas opas e se cortando com as disciplinas afiadas sagravam o chão tórrido com seu sangue e sua fé. Do mundo descampado do seco Nordeste, brotava o silêncio dos pássaros na sequidão dos riachos, e os filhos do tempo desfiguravam as estradas em busca do impreciso.

No local do Caldeirão sobraram uma cruz aos pedaços e um sonho pisoteado. Homens desprotegidos como meninos pelados de socorro e sorte espalharam suas esperanças pelos contrafortes da Serra do Araripe e pelas ruas descalças de Juazeiro. O caldeirão virou cenário que se construiu de ensolarado ossuário. As águas minguaram todas nas galerias do céu.

Era o sertão contra o mar. Era Severino Tavares contra um trem carregado de soldados. Era Padre Cícero contra Dom Joaquim, Floro Bartolomeu contra Franco Rabelo. Foi então que apareceu Révia Herculano para cantar entre os contendores dessa ilíada.

Pôs-se sobre o muro dessa Tróia sitiada e elaborou o réquiem poético e épico da redenção do vale.

Essa poética tem, entretanto, um foco que sacraliza uma personagem martirizada. Trata-se da beata Maria de Araújo. O episódio da hóstia tornada sangue levou-a a ser vítima de perseguição por parte de setores da igreja. Torturada e perseguida, mesmo depois de morta, não conseguiu sossego.

"O meu pai me enterrou / e a madrasta me exumou". Tendo sido inicialmente enterrada na Igreja do Socorro, bastou Padre Cícero morrer para que desenterrassem-na como vil perseguição "pos mortem". Révia Herculano enfatiza esse episódio para demonstrar a culminância das perseguições e torturas que a indefesa beata veio a sofrer ao longo da vida.

Esse "Solo sagrado" é livro para se ler em contrição. Cada vez que a autora se utiliza de um refrão é como se estivéssemos em plena cerimônia de uma celebração religiosa. Já com relação a posicionar-se diante do fato retratado, Révia Herculano não deixa dúvida com relação ao que aconteceu a Maria de Araújo.

Prova disso é que no poema "A cinza da injustiça", ela repete seis vezes: "Maria de Araújo, roga por nós!". Isso porque o que aconteceu em Juazeiro do Norte ainda hoje provoca especulações, mas o martírio a que foi submetida Maria de Araújo não deixa dúvidas de que foi essa beata a vítima principal de todo ocorrido em Juazeiro. Essa é a conclusão que se extrai após a leitura desse belo livro de Révia Herculano.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 13/10/15.


 

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