top of page
  • Foto do escritorBatista de Lima

Rugas e cabelos brancos

Batista de Lima



Instigado que fui para expurgar as primeiras névoas que teimam em se escanchar no meu cocoruto, estive a cogitar sobre as agruras que enfrentarei ao ultrapassar os umbrais dos sessenta. Não que tenha arrepios ao pensar no ritual de passagem. O que dói, há algum tempo, é o dedo em riste das circunstantes mais íntimos me indicando cabeleireiros, manicures, pedicures e rastreadores de pés de galinha, todos empunhando ferramentas esterilizadas e cremes milagrosos para que eu retorne jovenzinho aos campos da infância com a camisa aberta ao peito. Já cheguei até a me imaginar subindo em árvores, correndo em maratonas, zagueirando partidas de futebol entre TEC e GREMAN, e, o mais precioso, flertando, se é que ainda se flerta, nos corredores do shopping após pegar um bronze na praia do shampoo. Não, não é bem isso que estou querendo, principalmente agora que estou a ler Dom Quixote e tendo optado em me travestir de Sancho Pança, sem asno, de pé no chão e olho no real. Que me deixem com meus cabelos brancos. Que eu me agrisalhe todo na minha autenticidade. Não precisarei encobrir meus anos e embotar minha experiência de vida. Minhas rugas são a ficha catalográfica do livro da vida que tenho levado. Cada uma tem uma história a contar. São córregos, riachos, arroios, rios, grotas e grotões, levadas e sulcos cavados pelas lágrimas e pelos suores da trajetória que desenvolvi. Cada uma é resultado da erosão que a oitiva cava. Meu anjo da guarda nem alegre ficou quando extirpei alguns sinais que herdei das jovens manhãs de praia. Assim sendo, não vou desgostar esse anjinho querido que tem me mostrado a profundidade dos abismos e me protegido da fúria das procelas. Quanto respeito imprime uma cabeça branca, uma bengala e um par de óculos. Certa feita quiseram recauchutar Paulo Autran e ele deu lições de vida sem arado terraplanando seu relevo original. Nunca deixou de ser jovem e gênio, principalmente porque nunca deixou de ser Paulo. Sempre me dizem que preciso ficar mais belo para mim mesmo. Sentir-me feliz quando me olhar no espelho. Não sabem esses que me vejo muito mais de olhos fechados. Que o espelho mais forte está por trás do olhar. Que é preciso tatear na escuridão para devassar uma claridade que se guarda. Estar vivo a essas alturas da vida já é um milagre. Estar funcionando sem mudança de lanternagem, com todas as peças originais, primogênito de dez rebentos feitos pelo mesmo casal e paridos na mesma cama, já sou um milagre ambulante. Preciso ser olhado como algo raro, como uma construção que se constrói se conservando. O corpo precisa ser construído de dentro para fora. É preciso primeiro ser lareira para depois ser lar. O fogo que aquece e produz chama está no íntimo dessa casa corpo protegida da borrasca lá de fora. Cada cabelo branco que se ergue na minha cobertura é como um pendão de cana. É sinal de madureza, doçura e serenidade. Um canavial pendoado guarda por baixo de sua brancura a fartura da boa moagem. Essas névoas sobre meu Kilimandjaro são mananciais de fartas histórias e experiências vividas. Cada cabelo branco representa uma saga, conta uma história que tendo ou não tido um final feliz serviu de lição para o andar continuado. Cada cabelo branco é uma página escrita desse grande livro que o dia-a-dia vai escrevendo. Não vou mascarar essa memória viva. Não vou soterrar esses caminhos que se escrevem nas faces como testemunho de que sou fiel ao meu passado, ao meu presente e quiçá ao meu futuro. A devastação de um relevo não impede o transitar do sonho. As léguas que caminhei precisam de um auto relevo o mais próximo possível do real. Depois, tenho tido pena das rugas. Como são odiadas as coitadas. É mania nossa dar vários nomes àquilo de que não gostamos. E por não serem amadas nossas silenciosas rugas são apelidadas de carquilha, prega, vinco, cânion, grota, sulco, rufo, dobra, rego, escoadouro lacrimal, rofo, corrica, dobra, refego, sarjeta, plicatura, dobradura, riacho dos tempos, plica, sobramento, gorovinha, etc. São tantos os nomes quantos são os medos de enfrentá-las. Outro medo que se tem é dos cabelos brancos. Diz o matuto, que esse nome ´cãs´ é para simbolizar o feminino plural de ´cão´. Outros dizem que vem de ´canas´, que quando amadurecem soltam brancos pendões. Dizem ainda que os cabelos brancos são sinais de uma evolução em que o homem se tornou cada vez mais ambicioso e capitalista. Daí que os índios não os possuem. Um dia desses me deparei com uma senhora de cabelos brancos. Uma verdadeira raridade, peça caríssima de um museu circundado por um mundo de tintas, cremes, botox, lipos, esmaltes, peircing, tatuagens, blushs, batons. Estava ali uma das últimas reservas autênticas, naturais da espécie humana, neste admirável mundo novo. Era algo para ser observado e estudado por cientistas como prova de que é possível ainda se viver sem se curvar aos ditames da indústria cultural. Era uma prova de que é possível ser idoso neste mundo feito apenas para os jovens. De que não é preciso bater continência às grifes para se manter com vida. Quem quiser, que bata continência às minhas cicatrizes. Que tropecem nas marcas que a catapora deixou. Que cantem loas a este sobrevivente de sarampo, caxumba, coqueluche, dordolha, frieira, pé-de-atleta, bicho-de-pé, íngua, espinhela caída, quebranto, cabeça de prego e panariço. Cada percalço deixou suas marcas de uma luta que me vangloria por ter saído vencedor. Cada cicatriz que carrego, cada ruga, cada cabelo branco é um troféu das batalhas que enfrentei. Como estar de pé a essas alturas? Quais as meizinhas para se chegar a tanto? Primeiro, ter sorte, depois amar as pessoas, não guardar rancor, amar a dor como forma de suportá-la, acreditar em Deus e nos homens, dormir bem e sonhar muito. Sonhar em todas as horas e ter um grande amor. No meu caso, essa dama maravilhosa, cigana dissimulada com seus olhos de ressaca, essa misteriosa mulher que apelidamos de poesia. Sem poesia, a vida não têm manhã, delírio e êxtase. Poesia é um cafuné na cabeleira da alma.

 

29/04/2008.

 

3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page