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Rosa Firmo e os rituais do sertão

Batista de Lima


Há uma certa decadência em torno dos rituais que sempre acompanharam o homem nas suas manifestações culturais. As relações humanas ficaram mais objetivas, o que levou à decadência das mesuras, dos afagos e dos ritos. Não se pedem mais alvíssaras na hora da boa notícia. Não se cede o lugar ao mais velho. Não se ouvem mais, com a atenção antiga, as histórias dos idosos. Os rituais dos casamentos, dos nascimentos, dos velórios, tudo mudou para práticas objetivas e ajustadas aos olhos jovens. A UTI isolou o moribundo que sofre com a solidão e com a companhia de outros morrentes.

Esses rituais não caem no esquecimento porque os escritores os põem nos livros e as gerações tomam conhecimento, mesmo não os pondo em prática. Um desses escribas que registram essas práticas em desuso é Rosa Firmo. Essa escritora acaba de lançar (2013) o livro "No ritmo do meu rastro: histórias coligidas". São 194 páginas da RDS Editora. Apesar de ser uma seleta de temas variados, esse oitavo livro da escritora prima por presentear o leitor com memórias de sua infância sertaneja em que os rituais familiares eram revestidos de decência e pureza. Sua terra natal é o sítio Tapera, nos arredores do distrito de Quitaiús, em Lavras da Magabeira. Naquele paraíso distante, ela conviveu com folguedos, novenas, desobrigas, promessas, terços de penitentes e visitas de cova.

Menina de sítio, Rosa Firmo passou a infância ouvindo histórias de trancoso, muitas do arco-da-velha, daquelas em que se entrava pela perna de um pinto e se saía pela perna de um pato a se pedir mais quatro. Nas noites do sítio, sem rádio e sem televisão, à luz da lamparina, as sombras eram propícias à ampliação das narrativas fantásticas. Quando não se contavam histórias, era porque se estava rezando. Nove noites de novenas em homenagens a cada santo protetor de cada casa. Após a reza, as cirandas entre as crianças e os folguedos entre os jovens. Rapazes e moças brincavam do Casamento Oculto, Anel, Lado Direito e do Gato Podre, enquanto a meninada nos Três, três passará e Esconde-esconde, os mais velhos falando em inverno e notícias de valentia.

Rosa Firmo viveu esse ambiente de mitos que hoje não se cultivam mais. As procissões, geralmente, eram resultantes de promessas feitas em tempo de seca e pagas apenas quando chovia. As cantorias aconteciam à noite nos alpendres das casas. Dois violeiros digladiavam em versos rimados e de improviso. O repente varava a noite e as moedas tilintavam numa bacia para a paga dos poetas. E vinham os motes: "Faz pena a mulher nascer, ficar velha e se acabar", ou ainda "É duro pensar nela sem ela pensar na gente". Também havia as emboladas.

As emboladas eram feitas, às vezes, na hora. Entretanto, algumas ficavam na boca do povo. "Eu dei um pulo/ por cima da ligeireza / quebrei tamborete e mesa / cadeira de balançar". Além disso tudo, as memórias da autora se alastram pelos campos livres da fazenda, em que a meninada se esbaldava comendo canapum, flores de mofumbo d´água, araçá, mangas, goiabas, cajus e cajaranas. Se o grande Riacho do Rosário vinha com enchente de barreira a barreira, a água era barrenta, como se levasse o sangue da terra em protesto, pois na seca aquele precioso líquido poderia faltar. Essa correnteza era observada como se o tempo fosse lentamente se esvaindo.

Hoje, essa correnteza se instaura na memória da autora, trazendo nas suas águas, a casa da infância como se balceiro fosse. Acontece que balseiro grande em riacho estreito se engancha. É então que Rosa Firmo abre as portas da velha casa ancestral e bota fogo no fogão a lenha de marmeleiro para deixar as pamonhas quentinhas. É preciso ativar " o tacho grande de doce de leite, o bule de ágata cheio de café à beira do fogo para não esfriar. A nata exalando um cheirinho gostoso derretendo-se em manteiga no fogo". É preciso mais graveto nesse fogão da memória para sustentar a labareda do retorno.

A culminança desse livro de reminiscência está no capítulo "Vitrais da minha infância". Ela começa a adentrar seu latifúndio memorial pelo alpendre da casa paterna. É então que bota as redes para balançar com suas varandas, veste o gibão de couro e na sela de montaria, com arreios e apetrechos, sai vaqueirando paisagens, festejada pela algazarra do assum-preto, do sanhaçu, do bem-te-vi e do nambu. Depois, no retorno aos aposentos da casa, vai revirar "os baús revestidos de couro, desenhados com monogramas e botões de metal dourado, herança dos artesãos advindos da Ibéria". Feito isso, sua lembrança bota as mulheres artesãs para a confecção do crochê, do bordado a mão, do fuso de fiar algodão, da renda de almofada com bilros e espinhos de mandacaru.

Rosa Firmo não esquece, ao final, de apresentar alguns rituais do casamento sertanejo da sua infância. Primeiro, o rapaz tinha que pedir a mão da moça ao pai da futura esposa. Oito dias antes do casamento, o casal passava sem se comunicar. A maquiagem da moça era pó e Rouget Royal Briar. Como perfume, usava o extrato Dyrce. No cortejo do sítio até à vila, a noiva ia a cavalo, montada de banda, em sela própria para mulheres. A festa era regada a carne de boi, carneiro, peru, capão e muita bola de carne de porco à milanesa. A festa de casamento ocupava a noite toda ás vezes até o dia. As crianças bebiam guaraná, os adultos bebiam cerveja, quinado e cinzano.

As bebidas ficavam enfiadas em um monte de areia umedecida desde a noite anterior para que esfriassem, já que não havia geladeira nem energia elétrica. Tudo isso compunha um cenário que a autora desenhou com capricho para que seus leitores se transportem no tempo e revivam o tom nostálgico dos folguedos sertanejos. Rosa Firmo se firma, assim, como criteriosa memorialista.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 20/01/14.


 

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