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Rios em leitura

Batista de Lima



A leitura não se resume ao mergulho no texto lingüístico. Da mesma forma, a teoria da comunicação não se resume ao estudo do signo lingüístico. Pois se existe o signo semiológico abrangendo os entes da cultura, assim existe a leitura desses seres como forma de entendimento da mensagem cultural que eles transmitem. Um desses signos é o rio. O rio prenhe de mensagens. Primeiro pela água, que ao lado da terra, do fogo e do ar, faz parte do quarteto de arquéticos interpretativos da natureza. Depois pela sua dinâmica interligadora de variados contextos. Foi a partir dessa importância do rio como elemento de comunicação que nos propusemos comparar o tratamento que lhe é dado em dois poemas, um de Francisco Carvalho e outro de Fernando Pessoa. Os poemas são: ´O rio da minha aldeia´, de Carvalho e ´XX´ de ´O guardador de rebanhos´, de Fernando Pessoa. O texto base para nossa comparação é o de Francisco Carvalho. Esse poeta, nascido na cidade de Russas -CE., em 1927, tem se consagrado como uma das mais afinadas vozes da poesia cearense das últimas décadas. Uma das provas do seu talento se configura com a obtenção do 1º lugar no Prêmio da Bienal Nestlê de Literatura Brasileira, de 1980, o certame literário mais disputado do Brasil daquela época. O seu livro premiado foi Quadrante Solar, mas outros são também de igual grandeza, e entre eles podemos citar Os mortos azuis (1971) e Pastoral dos dias maduros (1977). O outro texto, de Fernando Pessoa (1888-1935), foi retirado de ´O guardador de rebanhos´, escrito entre 1911 e 1912 e atribuído a um dos seus heterônimos, no caso, Alberto Caeiro, caracterizado principalmente pela contemplação. É um poema que confronta o Tejo com o simples rio de sua aldeia. Observa-se logo que o poema de Francisco Carvalho é escrito ´a modo de Alberto Caeiro´. Exatamente é aí onde se constata a intertextualidade oriunda do poema de Pessoa que já se anuncia no título do poema. O Tejo é então descontextualizado e destronado de sua significância através do recurso da repetição do verso ´em nada lembra o Tejo´. Essa é uma forma veemente de negar a importância do Tejo diante da importância de seu rio. Daí que o que poderia ser uma simples paráfrase, passa a ser o contrário. Seria muito mais uma (anti) paráfrase, já que existe um desmonte do texto pessoano. Essa desrealização atua sobre o real Tejo, tão real que vem com toda uma mapeação de apoio. Já o rio do poeta é pessoal e não aparece mapeado. O mapa-mundi não consegue retê-lo porque ele está além dos limites concretos que o mapeamento possa alcançar. É tanto que Carvalho tenta mapeá-lo com recursos lingüísticos como é o caso do paradigma que se estabelece em ´O rio.../ rumo de Roma/ rumo de Reno/ rumo da noite/ rumo do mar...´. No plano do conteúdo, fica difícil se admitir que haja um rio que passe por Roma e pelo Reno. Mas no plano da expressão, cola bem o termo Reno que aparece no poema com suas várias conotações, especialmente as ligadas à fonética, à tonalidade que surge do ajuste dos termos. Esse mesmo recurso o poeta também utiliza nos versos seguintes: ´(rio do sem-fim) / passa por dentro de mim´. Nesse caso, a sonorização de ´fim´ e ´mim´ dá uma intimidade maior com o rio. É como se o autor aconchegasse o rio no seu íntimo. Há, pois, um afunilamento, no nível do significante, do ´lato´ Tejo para o ´strictu´ rio de mim. Por outro lado, se partirmos do significado, a perspectiva é oposta, pois parte-se do ´lato´ rio de mim para o ´strictu´ tejo que dilui sua significação ao distribuí-la com as muitas pessoas que o possuem, por conhecê-lo. Pode-se então dizer que os dois autores lêem o rio. O Tejo seria a estrutura de superfície do texto rio. Através dela, os dois poetas chegam à estrutura profunda que seria os rios de suas aldeias. O significante sígnico seria o Tejo, o significado seria o rio de cada um. A relação com o Tejo seria uma relação sintagmática, a relação com seu próprio rio seria uma relação paradigmática. Como se vê, muito se parecem o rio de Fernando Pessoa e o de Francisco Carvalho. O primeiro é um pequeno rio de aldeia; o segundo, apenas um rio imaginado. Os dois, no entanto, possuem um mesmo referencial: o Tejo. Só que no poema do autor cearense, além do Tejo, há outro referencial que é o poema pessoano. Há, pois, duas intertextualidades para o poema de Carvalho e uma pra o de Pessoa. Interessante é que mesmo cheios, esses rios quando transformados em texto, apresentam vazios. Quanto mais vazios, pois, houver no texto, mais necessidade terá o leitor de preenchê-los. Quanto mais vazios houver, maior será o número de imagens que o leitor terá possibilidade de elaborar. A partir disso, podemos verificar onde se localizam, no texto base, os principais vazios. Um deles é a contextualização do rio do autor. Será um rio de sua terra, de sua infância, brotado repentinamente na sua relembrança? Ou será um rio relativamente grande, no caso, o Jaguaribe, que banha Russas, sua cidade natal, e grande parte do Ceará, mas que cabe no seu coração? São conjecturas como essas que implicam o conhecimento, por parte do leitor, de dados biográficos do autor. Surge então o perigo de se cair numa crítica de impressão. Uma crítica de impressão poderia provocar um afastamento do Jaguaribe, do Tejo. Ora, o rio textual é limitado apenas no seu percurso de superfície. Como ele apenas encobre um universo fluvial é de se concluir que todos os rios, de todas as aldeias, estão interligados. Há uma capilaridade subterrânea que liga todas águas. Assim, o Jaguaribe, de Carvalho anda de mãos dadas com o Tejo, de Pessoa. Cabe ao leitor percuciente, detectar onde eles se encontram e se dão as mãos no estuário profundo da escritura.

 

03/02/2009.

 

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