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  • Foto do escritorBatista de Lima

Ribamar vai ao mar


Batista de Lima


Padre Inácio vivia dizendo que Ribamar significava "margem do mar". Mas Ribamar nunca tinha visto o mar. Vivia ali naquela vilazinha que se espreguiçava na beira da estrada. Só o tempo passava pelos carros da rodovia. E tinha parentes na Capital, que quando vinham passar férias contavam histórias de mar e aventuras de praia. Foi assim que depois de meses de economia e ajuda de amigos, juntou dinheiro para a passagem de ônibus. O que faltava para completar a quantia foi emprestado por Dona Alacoque, do sítio Jurema. Ela no entanto cobrou um certo juro do empréstimo: que Ribamar levasse um chapéu de couro e trouxesse um litro d´água do mar.

O chapéu de couro era para que um filho seu, que morava na Capital e era vigia de repartição, tirasse um retrato enchapelado para ela expor na sala e matar a saudade. O litro da água do mar era para botar no açude da fazenda para criar onda de mar ali naquele pé de serra. Assim viajou Ribamar, montado numa expectativa tão grande que na noite antes da viagem comemorou com os amigos com muitas doses de "Fubuia". Daí que amanheceu o dia com uma ressaca tão grande que quase não conseguia entrar no ônibus.

Procurou logo sua cadeira que tinha número par e ficava no corredor. Ele não gostou da solução. Preferia ir do lado da janela para ir cubando a paisagem e curtindo as cidades. Acontece que naquela cadeira já havia uma senhora nem tão velha nem tão nova. Os dois se olharam mas não se falaram. O dia estava bonito, o céu sem muita nuvem, a terra sem muita sombra. Era bonito ver aqueles matos correndo para trás do ônibus. Só não estava melhor o efeito da bebida de véspera. Mas aprendera com os amigos que contra ressaca, era beber outras.

A primeira parada do ônibus ocorreu na cidade de Lavras o que foi suficiente para uma descida rápida e beber uma dose dupla de "Madeira de Lei". Retomando a viagem, verificou pela janela que a paisagem antes de se esconder atrás do coletivo ainda dançava e se retorcia aos seus olhos. Mal deu para notar que a mulher ao seu lado retirou uma garrafa por debaixo da cadeira e tomou uma talagada, colocando-a de volta no mesmo local. Quem dera se ele também levasse sua bebida no por baixo de sua cadeira.

A parada seguinte já foi no Icó com sua Rodoviária repleta de lanchonetes que vendiam também bebidas. Mais uma bicada dupla ele ingeriu antes de voltar ao assento sem sentir o chão debaixo dos pés. Logo na partida, mal saídos da cidade, a mulher busca a garrafa debaixo da cadeira, toma um gole e não tem a gentileza de lhe oferecer um pouco. O sol da manhã já esquentando e penetrando pela janela lhe dava uma sede danada, mas a mulher bebia e não lhe dava chance de compartilhar.

Já meio dia estavam em Jaguaribe e na parada, tudo se repetiu. Ele bebia sua dose cavalar e voltava cambaleando para o ônibus, em que a mulher ao seu lado, circunspecta, ficava naquela de nem te ligo. Bastava o ônibus se movimentar, ela ia com a mão para debaixo da cadeira e tirava a garrafa para o gole precioso. Ribamar mal se continha na sua ânsia de também beber daquele precioso líquido que não lhe era oferecido. E o pior é que a quentura no ônibus e fora dele era convite para matar a sede.

Ao passar por Russas, já no calor da tarde, tudo se repetiu e Ribamar já estava até com a visão embaçada de tanta bebida. A mulher ao lado, mal bebera sua dose da garrafa, caiu em profundo sono. Foi o suficiente para Ribamar escorregar sua mão por baixo da cadeira e trazer para si a garrafa alheia. Tomou então duas doses da bebida e devolveu a garrafa ao lugar de onde a retirou. Já próximo ao fim da viagem a mulher acordou e tomou sua última talagada.

Mais uma vez não ofereceu ao seu vizinho desejoso. Os dois continuaram em silêncio. Mas Ribamar não se conteve e perguntou à mulher se tinha sobrado daquela bebida, afinal ele estava com muita sede e gostaria de tomar um gole. A mulher espantada passou a lhe explicar que não era bebida que havia na garrafa. O que acontece é que ela era tuberculosa, ia procurar recuperação na Capital, e seu médico sertanejo orientou que ela fosse cuspindo na garrafa e não no piso do ônibus para não contaminar os passageiros já que sua tuberculose já estava em estado muito avançado.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 01/10/13.


 

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