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  • Foto do escritorBatista de Lima

Retirante retornado

Batista de Lima


Ele fora para São Paulo quando o horizonte abriu os braços e mostrou o sorriso da ventura. Deixou para trás pai e mãe, a rede cheirosa de dormir, o silêncio do engenho e o berro silenciado dos bois do pasto. Foi e lá ficou abraçado pelo frio e festejado pela solidão. Operário de fábrica, preferia mil vezes estar manejando a passadeira de mel quente no engenho paterno. O orgulho, no entanto, cochichava na consciência que voltar era se dar por vencido. Conseguiu ainda levar um irmão como se um pedaço fosse de tudo que ficara no pé de serra.

Foi o irmão que amoleceu seu coração. Os dois voltaram com o arrependimento e a ternura de mãos dadas. O pai os recebeu com festa, a mãe, com promessas a pagar. Mas o que primeiro fora, trouxe dois relógios parados e uma interrogação atravessada nas conversas. A prodigalidade bíblica da recepção foi esmaecendo no passar dos dias. A mãe rezava e o pai ia plantando silêncios pelos pés de cerca. Ele, na rede azul de varandas longas, aguçava as oiças para ouvir os carros da metrópole e só lhe chegavam o pigarro do avô, e o latido dos cachorros. A casa da infância, que era tão grande, agora parecia ter amputado as pernas e perdera os cheiros da carne fresca e do café torrado.

Agora, a interminável voz do sem destino o chamava a cavalgar de novo as distâncias que antes palmilhara. Havia, no entanto, pesos pesando aos pés, dores minando as carnes. Sua vida ia criando raízes nos pés de serra e as esperanças se escondendo nos alforges. Não havia mais esquinas a dobrar nem a porcelana do brilho urbano. Tudo agora era mato e o cheiro da melosa começava a conquistá-lo pelas narinas desacostumadas. Carneiros já pastavam nas suas retinas e o sossego já tinha seu som estridente. Foi aí que ela chegou com o pelo dos canaviais atravessados e pôs inquietação e quebranto no seu coração. Começou nos cangapés do açude para desembocar nos cafunés da rede azul.

Era Quitéria seu nome de pia e trouxe olhos de alvíssaras e um silêncio feito bacia de água morna onde ele mergulhava seus desejos. Vinha vestida de dengo, tão recém de vida que ainda cheirava a leite. Mesmo assim trazia o mistério que amarrota as águas e escurece as nuvens. Veio pousar sua languidez nascente e seu pouco mundo andado nos braços dos maduros dias do retornado aceso. Era a roceira trazendo seu roçado para o plantio primeiro. Não sabiam os dois que um Macário de Tal, pescador de águas turvas, já havia decidido pela posse dos aceiros das terras roxas e devolutas daquela maciez que grassava pelos caminhos do sítio.

Os dois relógios do tio voltaram a funcionar depois de apresentados à brejeirice da moça. Mas, nas caladas da beira d’água, o pescador Macário só pescava os cheiros daquela fugida dos seus braços escamosos para as varandas da rede azul. Numa quarta-feira sem sol, dessas de nuvens pesadas, ele pescando sem isca nos cafundós das saudades, viu as águas do açude das pedras acomodando os corpos dos dois amantes em pantominas de volúpia muita. Toda uma lembrança de dias idos e vividos em encontros na mangueira que ficava no fim do sítio vieram clarear na sua cabeça de muita dor.

Macário há mais de ano se rendeu àquela moça, deixara de pescar traíras pois só fisgava planos. Já fizera os alicerces de sua casa de taipa e encomendara uma cama das que aguentam rojão noturno. Tudo preparado estava para o ninho da pombinha desvairada. Foi então botando fogo por todas as suas narinas que camuflou-se na densa moita criada na beira da trilha. A moça saiu mais cedo das águas do aconchego crescente e, rumando para casa, deparou-se com Macário feito fera encantoada. Ele enterrou a faca no peito arfante de Maria Quitéria e no outro dia, madrugando, o outro voltou para o Sul, levando os relógios de novo parados.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 06/08/19.


 

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