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Respeito à vocação

Batista de Lima



Médico conhecido andava desiludido pela opção de meio de vida que o filho escolhera: poeta. Ora, quase todos os varões da família seguiram a Medicina e as mulheres, a Enfermagem. Agora vinha esse, filho único, enveredar pelo mundo da arte. Ainda chegou a cursar algumas disciplinas do curso de Medicina. Isso até se deparar com as primeiras aulas de Anatomia. Foi seu primeiro desmaio. Abandonou o curso e foi fazer Letras. Para desgosto do clã, dedicou-se à literatura, à música, às artes cênicas. Isso tudo com a explícita reprovação do pai, da mãe, dos tios e dos avós. A tal ponto chegaram as desavenças em casa, que o rapaz foi morar só, para conseguir sossego. A sua vocação para as artes não foi entendida por aqueles que lhe traçaram o destino, como se o livre arbítrio não fosse conquista de direito do ser humano. O escritor profícuo em que vai se tornando, o compositor já de renome com músicas gravadas por conhecidos cantores, tudo poderia estar perdido, e sua vida frustrada se não tivesse feito fincapé no chamamento para que foi nascido. Isso me lembra frase que meu avô dizia diante dos casos de rebeldia familiar que encarava: ´O homem é p´ro que nasce´. Dizia isso e deixava que a pessoa traçasse seu destino. E todos os seus descendentes seguiram suas vocações. Outra lembrança que me vem à mente é a famosa passagem do Dom Quixote, no capítulo XVI, na sua segunda parte, de 1615, quando o engenhoso cavaleiro de la Mancha se encontra com um discreto conterrâneo seu. Desgostoso, o viajante conta para o cavaleiro da triste figura que seu filho de dezoito anos em vez de se dedicar ao estudo das leis, conforme seu desejo de pai, fora enveredar pelos caminhos da poesia. Dom Quixote, diante da tristeza do viajante, afirma: ´Seria eu de parecer que o deixem seguir aquela ciência para a qual o virem mais inclinado; e ainda que a da poesia, seja menos útil que deleitável, não é das que soem desonrar quem as possui´. Daí em diante começa Dom Quixote a explicitar as vantagens do convívio com a poesia. Para apresentar as vantagens do ser poeta, Quixote começa fazendo comparações: ´a poesia, senhor fidalgo, em meu parecer, é como uma donzela terna e de pouca idade e em todo o extremo formosa, a qual têm cuidado de enriquecer, polir e adornar outras muitas donzelas, que são todas as outras ciências...´ Segundo ainda o personagem cervantino, a poesia ´é feita de uma alquimia de tal virtude, que quem a sabe tratar a volverá ouro puríssimo de inestimável preço´. Assim como os poetas, também têm importância os pedagogos, verdadeiros condutores dos aprendizes ao mundo do saber, mostrando-lhes os caminhos mais fáceis para se chegar ao paraíso da sabedoria. E por falar em sabedoria, ela não escolhe profissão, e sim pessoas, para instalar a culinária da sua percepção. Portanto, ser escolhido e saber-se escolhido, já é um privilégio diante de muitos jovens de hoje que galgam cursos formais sem saberem se ali reside sua vocação. Sentir-se chamado para um destino, é pois, vantagem e não desvantagem, independente do rumo para que nos sentimos atraídos. Sentir-se atraído pelos rumos da poesia termina por ser até um privilégio. É por isso que o cavaleiro manchego continua na sua reflexão a dizer que: ´o poeta nasce: quer-se com isto dizer que do ventre de sua mãe o poeta natural sai poeta, e com aquela inclinação que o céu lhe deu, sem mais estudo nem artifício...´ Quando o sonhador cavaleiro acertadamente fala em poeta, refere-se ao artista de uma maneira geral, refere-se a qualquer um que se dedica à arte. Para ele, ´a arte não se avantaja sobre a natureza, senão que a aperfeiçoa; assim mescladas a natureza com a arte, e a arte com a natureza, darão um perfeitíssimo poeta´. Poetas sempre existiram e existirão. Muitos derrotistas já declararam a morte da poesia, outros proclamaram a morte da palavra, mas ambas continuam vivas e até revigoradas. Até parece que quanto mais açoitadas, mais vigorosas se tornam, e mais necessárias. Neste nosso momento da existência, em que o tempo de ócio é cada vez mais necessitado de aproveitamento, é a arte que vem suprir essa necessidade humana de transcender. Daí que o artista hoje se faz mais necessário do que nunca. E são muitas as profissões que hoje se ocupam desse manejo do ócio. Até a arte da escrita é um regalo para quem nasceu vocacionado para a pena. Famosa é a frase de Cervantes quando chega a afirmar que ´a pena é a língua da alma´. Assim como a vocação para a escrita, há aqueles que se vocacionam para a agricultura, e aí ficam enfrentando desestímulos dos circunstantes, como se arar o campo e produzir alimentos fosse opção menor como meio de vida. Não sabem eles o arrebatamento de se ver um milharal pendoado, um arrozal caixeado, um lastro de feijão no seu florir. Depois, há satisfação da colheita, o produto da lida diária, e o destino do cereal que vai saciar as fomes das gentes no tugúrio das mesas fartas. A produção de alimentos, quando resposta a uma vocação, não deixa de ser um apostolado, uma satisfação pessoal, que se complementa na satisfação do outro. Uma das exigências da vocação não é apenas seguir sua trilha, mas também permanecer nela. Há pessoas que seguem sua vocação apenas temporariamente, mostram as aptidões para que nasceram, mas são, às vezes, vítimas da inconstância e mudam de rumo, terminando por desnortear-se. Aí vem outra dica do velho sábio sertanejo que sabe dar conselhos: ´Faça pucumã, meu filho´, ou seja, persista na sua vereda que seu sertão se descortinará. É preciso criar raízes naquilo a que nos apegamos. Ficar pulando de galho em galho pode ser um descaminho, um passo em falso. Há pessoas que fizeram de tudo na vida e terminaram por não fazer nada, não deixaram registrada a marca do seu fazer. É preciso, pois, investir-se na vocação. A melhor resposta para esse chamamento é a adesão, e, em seguida, o investimento nele. Todos nós temos inclinação para alguma coisa. Essa inclinação é um apelo, é uma disposição natural para nos darmos melhor na vida, é o que os romanos chamavam de ´vocatio, onis´, e levavam muito a sério essa propensão para os ofícios, com a qual nascemos. Ao longo dos tempos, muitos tiveram a vida sacrificada por não poderem desenvolver o pendor com que vieram ao mundo. Muitos tiveram seus talentos dissipados por interditos familiares, por preconceitos injustificáveis. No momento em que vivemos, em que um lugar ao sol é cada vez mais difícil, uma das formas de superação das dificuldades de se viver bem, profissionalmente, é permitir que cada um siga sua tendência natural. Afinal, uma das formas de se conseguir a felicidade é se fazer naquilo para que fomos chamados. Para tanto é necessário que tenhamos vocação e que respeitemos a vocação do outro.

 

21/07/2009.

 

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