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Renato Pessoa e as dores do mundo

Batista de Lima


No último dia do mundo, estará o último homem. Esse homem terá a imagem mais poética de todos os tempos. Será a imagem da morte da maior invenção humana: a palavra. Antes, porém, de sua morte, a palavra ainda provocará muitas revoluções. Uma delas será em torno da linguagem. A metáfora será o último suspiro do verbo. Se no princípio era o verbo, no final também será ele no seu último estertor. Será o momento em que as artérias do tempo explodirão e as gaiolas do silêncio serão para sempre abertas. Todos os ponteiros do mundo ficarão parados e nada mais será, apenas terá sido, e a paisagem inerte será um poema sem música.

Renato Pessoa nem era nascido, quando a poesia morreu, segundo os jornais, em 1918. Desde então os poetas botam luto poeticamente. Agarram-se nas palavras de salvação e navegam em busca de uma terceira margem, já que as duas primeiras se estilhaçaram no horizonte. Desde então as coisas se alienaram aos fatos, ao emprestarem seus nomes para o caos parir um mundo, numa orgia universal das mais violentas. Foi aí que Nietzsche resolveu fustigar a clássica filosofia para incendiar a verdade, colocando Platão num lugar secundário.

Renato Pessoa, filósofo de nascença e de formação, tentou cuspir duas vezes no mesmo azul, mas não conseguiu ir além da sombra, no seu salto para escalar uma parede sem portas, fugindo do seu próprio grito, acuado numa capoeira. Para seu desespero, descobriu muito cedo que o ser já nasce sangrando sob a lâmina do tempo. Muito cedo aprendeu a ouvir os cães latindo, em protesto contra a ilusão das auroras. Muito cedo aprendeu a ouvir o choro das árvores que caixões vão se tornar para embalar nossos esquifes.

Esse poeta, que tem vísceras que servem e estômago que arde, desenha o mundo apocalíptico com um cajado feito de lâminas verbais, cravejado de sonoridades elegíacas. É um profeta que não nos dá esperança, pois vem armado de “quimeras falidas”, diante do “cinismo das eras”. Vem para alertar os falsos poetas, que poetas não são, de que “somente nos epitáfios está a poesia de verdade”. Pois é, camarada, captei desse poeta, que se quiseres poetar, sujas-te da vida que te cerca e da morte que te espreita, e quando não mais couberes em ti, empresta-te às palavras tão necessitadas de ti.

Quando esse renascido poeta fecha as malas, os navios da noite deixam de atormentar a placidez das águas. Quando o leitor embriagado fecha esse livro de dores, conclui que o mundo está velho e com galopante esclerose. É que os dilúvios perdem suas voragens, os cães não encontram suas lonjuras e a noite se assombra de seu tamanho. É então que tudo ficará triste como um chinelo virado, como uma ladainha sem vozes, como uma madrugada que não quer amanhecer. O que esse poeta faz é escrever o epitáfio do que nos espera e gravar num relâmpago esculpido no horizonte que se perdeu. Por isso que “ esse homem que foi escrito pelo poema” continua tecendo luas para produzir luares e assoviando ao vento para despertar o dia.

Renato Pessoa, nesse livro, “O homem do último dia do mundo”, apresenta seu luto pelo mundo já devorado pela voragem da pele. Põe-se no texto como uma criança procurando infância. Procura, através do antes, remendar o depois, já ferido de morte. Não tem medo da morte por ter vida em excesso. Por isso chega a afirmar que sua “alma é uma geografia sem nome”. É como se através do verso passasse a costurar a mortalha do mundo. E ainda instiga seus leitores a participar das ezéquias. Daí que sua poesia sombria instaura a noite em quem dela se apropria. Põe ovos de presságio no ermo encantoado da vida. Depois ainda provoca a fúria das palavras como se na vida não restasse esperança. É o banquete do caos.


jbatista@unifor.br.

08/10/19.

 

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