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Rachel de Queiroz para crianças

Batista de Lima


Nesse universo de contraste, a autora consegue, através do pintinho andante, a transfiguração de seu personagem. Na realidade, a riqueza maior é de Cafute. A grande fortuna da personagem é poder construir seu sonho. Caçar minhocas para comer é apenas um pretexto para o pintinho cruzar novos mundos. Seu alimento de verdade é o sonho. É, pois, essa valorização da aventura sonhadora que embala a leitura da criança.

Além de "O menino mágico" e "Andira", livros para crianças, Rachel de Queiroz também escreveu "Cafute e Pena de Prata". É um livro que conta as aventuras de dois pintinhos marcados por grandes diferenças. Cafute é um pinto pobre, figura picaresca, que não se aflige com as mais difíceis situações, pois vive montado em sonhos. Pena de Prata é um pinto rico, preocupado com cada passo que dá, almofadinha, alienado. Os dois, no entanto, possuem algumas características comuns que os fazem companheiros de aventuras.

Esse livro de Rachel de Queiroz já está na nona edição, o que comprova a boa receptividade por parte do público infantil. Ela admitia que é muito difícil escrever para criança. Criança é leitor sincero. Só lê quando realmente gosta. Neste caso, não só a história é interessante como a apresentação é um convite para a leitura. É uma edição da Caramelo Editora, de 2004, que traz ilustrações muito caprichadas, de Maria Eugênia.

A ilustradora colabora com a "Folha de São Paulo", com seus trabalhos, e tem divulgado sua arte em várias feiras internacionais. Portanto, sua parceria com Rachel de Queiroz foi realmente adequada. Rachel de Queiroz é estudada pelos teóricos, com ênfase nas suas narrativas para adultos. "O quinze", "João Miguel", "Caminho de pedras", "As três Marias", "Dôra, Doralina" e "Memorial de Maria Moura" têm servido de fonte de pesquisas para ensaios, artigos, monografias, dissertações e teses. No entanto, suas crônicas e principalmente seus livros para crianças não têm sido estudados como merecem. Agora, no ano do centenário de seu nascimento, acreditamos que todas as vertentes de sua criação literária sejam contempladas com estudos críticos, em especial, sua produção para o público infantil.

No caso de "Cafute e Pena de Prata", a primeira curiosidade que nos desperta é com relação à intertextualidade. Cafute é uma figura quixotesca. Seu comportamento apresenta caracteres que marcaram a trajetória do cavaleiro de La Mancha. Seu rocinante é o próprio sonho sobre o qual cavalga. Seu mundo de aventuras possui um porto de partida mas seu porto de chegada vai sendo construído ao longo da jornada. Assim, deduz-se que a autora, além de ter lido "Dom Quixote", também deixou-se influenciar pela sua leitura. No entanto, qual o bom escritor que se furtou de trabalhar intertextualidades? A grandeza da escritura alicerça sua fundação a partir das boas leituras feitas pelo autor.

Pena de Prata não é apenas um "pinto de rico", ele tem suas atitudes marcadas pela racionalidade. É muito mais parecido com Sancho Pança que com Dom Quixote. Prova disso é que na maior parte das iniciativas que os dois tomam, a ideia primeira é de Cafute. O que o Pena de Prata quer é um grande terreiro com muitos galináceos onde ele possa ficar, virar galo e instalar seu poder. Essa idéia sedentária é a mesma de Sancho Pança que na sua racionalidade, o que quer mesmo é a ínsula prometida por Dom Quixote, para ser governador. Assim, Pena de Prata, no transcorrer da narrativa, muito mais aparece como escudeiro que como cavaleiro andante, que no caso é Cafute.

Cafute, segundo a definição dicionarizada, é piolho de galinha. É uma espécie de pixilinga que transita entre as penas da ave e lhe perturba o repouso. É muito pequeno mas é insistente, buliçoso, aventureiro, perturbador e implicante. Foi por conta desses caracteres que o pinto-de-pobre recebeu o nome de Cafute. Enquanto seu companheiro rico nascera em chocadeira elétrica, ele, na sua pobreza, veio a nascer em um simples ninho de palha. Seu nome Cafute foi dado pelos seus irmãos de ninho, também pobres. Já o nome Pena-de-Prata, foi Cafute que inventou para seu amigo rico, companheiro de aventura. Assim, para suas andanças aventureiras, o primeiro passo era cada qual ter seu nome.

Após adquirir seu nome, do tamanho de sua pança, cada um quebra sua rotina. Antes porém, é preciso que Cafute, com seu nome menor mas com seu sonho maior, salve Pena-de-Prata, com seu nome maior e o sonho menor, tirando-o do galinheiro. A partir daí os moinhos de vento vão surgindo na trajetória dos dois. A primeira lição de mundo cão que os dois recebem é do fantasioso galo de circo, que mesmo sábio, por saber fazer contas e pular no arco, se alimenta de ovo cozido. Ora, para eles, comer ovo é comer pinto. Logo aquele galo era antropófago. Assim, era melhor meter o pé na estrada em busca de minhocas para comer. É aí que encontram os pombos-correio, alienados, que voam, voam e sempre voltam para o mesmo lugar.

Voltar para o mesmo lugar da partida não faz parte dos planos, principalmente, de Cafute. Assim, é cair na estrada e continuar a busca por alimentos. É nessa nova etapa da andança que os dois encontram o galo de briga. Verdadeiro gladiador, esse galo vive em treinamento e alimentação balanceada para ficar forte e arrasar seus adversários. Só o treino com um carijó, onde os dois galos quase se matam, foi suficiente para assombrar os dois pintos transeuntes. A solução era seguir estrada. A estação seguinte é o encontro com o papagaio. Mas papagaio é palhaço demais, é bobo da corte, só serve para adular os humanos. Chega até a falar a linguagem do dono. Não valeu a pena esse encontro. Melhor foi encontrar o pavão e se deparar com um arco-ires feito de penas.

Foi nesse novo terreiro, com o pavão e muitas galinhas, que os dois demoraram mais. Pena-de-Prata se tornou um galo enorme, verdadeiro imperador do terreiro. Cafute ficou sendo querido por todos. Mas ali, com o tempo, passou a faltar a aventura da andança. Mesmo com a profusão de cores das penas do pavão, que simbolizam o mundo dos sonhos, aquele terreiro se torna ideal para Pena-de-Prata mas não para Cafute. O pinto de pobre se separa de seu companheiro rico e escudeiro, e sozinho segue sua aventura andante.

Nesse universo de contraste, a autora consegue, através do pintinho andante, a transfiguração de seu personagem. Na realidade, a riqueza maior é de Cafute. A grande fortuna da personagem é poder construir seu sonho. Caçar minhocas para comer é apenas um pretexto para o pintinho cruzar novos mundos. Seu alimento de verdade é o sonho. É, pois, essa valorização da aventura sonhadora que embala a leitura da criança. Esse livro torna-se então, uma preparação do pequeno leitor para a grande aventura do ingresso no mundo simbólico da leitura. A partir dessa leitura curta mas muito colorida, ele vai facilmente encetar grandes aventuras lecturais.


jbatista@unifor.br

09/03/10.

 

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