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Quantas de vocês

Batista de Lima


A leitura dessa coletânea de narrativas, intitulada "Quantas de nós", é uma convivência. O leitor passa a conviver com seis mulheres que sabem contar histórias. Maria Thereza Leite, Vania Vasconcelos, Cleudene Aragão, Carmélia Aragão, Inês Cardoso e Ruth de Paula se esmeram, querendo cada uma ser melhor que a outra.

Nessa disputa, quem ganha é o leitor, que se vê envolvido numa atmosfera tépida de algo que pode explodir ao longo do texto, e que se agasalha na gente como uma ameaça. Se alguma coisa acontece a mais, e como acontece, é na cabeça do leitor, que termina por promover seu final para cada história.

Essa coletânea de narrativas ganhou o Prêmio Moreira Campos de Conto, e acaba de ser editada pela Expressão Gráfica Editora. Cada autora aparece com cinco textos, que mesmo guardando algumas semelhanças temáticas, caracterizam-se muito mais pelas diferenças estilísticas.

Thereza Leite, como a decana narradora do grupo, ganhadora de vários prêmios literários e autora de expressivos livros de narrativas, caracteriza-se por uma serenidade de quem desenvolveu todas as marchas e encontrou o ponto certo da velocidade de sua linguagem literária. Ela brinca de criar mistérios que envolvem o leitor numa teia da qual ele precisa se deslindar ou sufocar-se. Thereza Leite ciranda com brinquedos verbais.

Vania Vasconcelos reencontra paraísos perdidos e dispensa. Sua "vida arrumada como uma sala num sábado à tarde" resiste aos assédios dos terremotos. Seus passos de ventania não impedem a espreita da cor de cada cheiro e até das cores de muitas coisas que não vê. Entretanto, é em "Pernas Estúpidas" onde ela se revela desvelada.

Mesmo mulher plena, ela convence que as planuras são passíveis de oscilações. Esse conto é tão contagioso que levará muitos leitores às livrarias em busca de amores perdidos. Além disso há ainda a perfeita intromissão desse poema de Bandeira, todo querendo ser Drummond. "A primeira vez que vi Teresa / achei que ela tivesse pernas estúpidas...".

A autora seguinte é Cleudene Aragão. Essa é a revelação da coletânea. Afinal, antes, este escriba não havia lido narrativas dessa professora de Letras, da UECE. Como escreve bem! Como brinca com o leitor, ao criar situações cujos desfechos são atalhos que desviam a atenção de quem lê! Ela brinca de esconde-esconde com o leitor.

Fala de rubores, dores, odores e amores que encantam homens, depois desaparece sem deixar pistas. Ardilosa essa clariceana narradora. O seu conto "Poderia ter sido" é encantador. Enfeitiça o leitor, fisga e comanda um sequestro do coitado e depois do desencontro, foge para Fernando de Noronha. Esse conto é um canto aos rituais femininos. Não é para se ler apenas uma vez.

Outra Aragão que aparece no livro é Carmélia. Nome de quem é bastante madura, Carmélia é a mais jovem do grupo. Felina seria o adjetivo para melhor definir seu conhecimento de gatos. Seu conto "A menina que escondia gatos dentro de si", que já havia sido publicado no seu livro de estreia, "Eu vou esquecer você em Paris", é revelador de seu talento criativo.

Sua narrativa é contaminada por tantas incertezas que dá a impressão de que não são suas personagens que oscilam de comportamento, mas é a autora que exercita uma luta contra a timidez. O ponto alto de sua escritura é a humanização de interditos que ela vai operando a partir da tessitura dos eventos narrados.

Diferente de todas as outras é Inês Cardoso. Diferente porque enquanto as outras cinco são urbanas, Inês é o sertão posto no livro. De um telurismo saudosista, com ela viajamos por paisagens rurais, casas antigas e engenhos. Do seu texto saltam canaviais, pendões de cana e açudes empanzinados. A fazenda Massapê onde nasceu, no município de Barbalha, é reconstruída através de seu texto.

Tudo aquilo que parava com a ferrugem do tempo volta a funcionar como dantes. Do seu texto se esvai até a tiborna das garapas esquentadas. Cambiteiros, tombadores, caixeadores e caldeireiros movimentam-se nas bagaceiras da memória. A fazenda Massapê não é apenas um retrato na parede.

Finalmente entra em cena Ruth de Paula. Não se lê essa escritora, saboreia-se. Sinestésica, ela dá a impressão de que enquanto as outras estavam na sala, ela cozinhava. É o texto dos sabores culinários. São saberes saborosos em textos para leitura de água na boca. Sua leitura não deve ser feita por quem está de regime, ou por quem tem problemas com glicose.

Para ela, o amor não é apenas habitante de alcovas. O amor nasce na mesa e se enrama pelos compartimentos dos sentidos. Amar é refestelar-se. O banquete preparado por Ruth de Paula começa com palavras escolhidas, sumarentas, para, depois de espremidas, entrarem na degustação do leitor.

Depois de conhecer cada uma dessas seis narradoras descobrem-se suas semelhanças. A celebração que executam possui rituais que se complementam. Suas realizações amorosas são suspensas para que o leitor as conclua. Misteriosas, elas não se revelam totalmente. São ritualísticas, detalhistas naquilo com que nos presenteiam. Mas não é tudo.

Despertam fomes e sedes mas não saciam. Provocadoras e sensuais, executam uma dança para o leitor, depois recolhem-se antes de qualquer frêmito. Conhecem as demandas do coração e as tonalidades dos batons. Entretanto, às vezes se abrigam nas nuvens, mas quando isso acontece, querem apenas saborear o gosto do possível despencar.

Esse livro escrito por mulheres é próprio para a leitura dos homens. Há um jogo entre sutilezas e voracidades, entre encantamentos e revelações, entre o claro e o sombrio. Suas evoluções vão do quarto à rua, da mesa à cama, dos odores aos suores.

É um livro de humanidades femininas. Afinal, entre calores e humores elas se põem no mundo com suas personas numa afirmação de que não são números. São feitas também de palavras. Alimentam-se também de falas. São feitos linguísticos. Narrar, para elas, é dar um sentido à vida, compartilhar o que pode ser compartilhado.

Elas demonstram que não são apenas superfície e que há muito mais coisas guardadas nas profundidades. Por isso, para nós leitores, que outras revelações nos sejam remetidas, quantas de vocês surjam, ou apenas nos instiguem a imaginação.


jbatista@unifor.br

15/03/11.

 

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