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Professor iniciante

Batista de Lima



Depois de tantos anos como professor, gostaria de assistir a uma tua aula de iniciante. Como eu aprenderia se me aceitasses em tua turma. Não há mistério no que passou. O mistério está no futuro. Está em tuas mãos. Há tantas mudanças cotidianas, que é preciso muito fôlego para acompanhar essa avalanche de novidades. Estamos em um parque de diversões, com tantas opções de brinquedos, que não se consegue distinguir qual a melhor opção para o ingresso neste novo mundo. O deslumbramento é paralisante. O detalhe morreu e não se sabe onde foi sepultado.

O grande mestre do professor ainda é o aluno. Pelo menos essa tradição persiste. Com o aluno, o professor aprende uma essencialidade: ser jovem também. Nisso o aluno é um excelente mestre. Ele traz, do seu mundo, tudo aquilo que nosso particular não oferece. A novidade mais recente entra na sala de aula pelas suas mochilas. Ele não está interessado em pincel e não sabe o que foi o giz. Ele possui o vídeo. Ele sabe que o mundo está de cócoras na ponta dos seus dedos. Ele não usa mais caneta, caderno, caligrafia, livro. Tudo está posto no seu regaço, mastigado e deglutido em um grande prato chamado rede social.

Como professor de Português, colega, estuda bem o Inglês. Se não souberes essa língua, que era estrangeira, não terás acesso ao velho Português. Afinal, tua maquininha que faz tudo por ti, só fala o Inglês. E os teus alunos sabem tudo dessa língua universal. Não esquece que todo dia é um recomeço, que a preparação da véspera pode se tornar obsoleta no dia seguinte. Nessa velocidade, o aluno possui botas de sete léguas e o professor se torna um mero facilitador. Afinal, os saberes trazidos pela garotada é uma matéria bruta que precisa ser burilada. Essa meninada traz saberes com os mais diversificados sabores.

Não imponhas pois sabedoria a teus alunos, eles precisam ter escolhas. Eles precisam construir seus saberes como quem prepara sua própria alimentação, como quem transporta o paladar para os temperos adequados. Hoje,

portanto, está mais difícil ser professor. Aliás, a palavra “professor” já está caindo em desuso pelo fato de remeter a um tempo em que o mestre, em sala de aula, ditava os seus conhecimentos, como quem obrigava os comensais a deglutir a sua culinária e não a dos convidados com a sua diversificada forma de ter fome. É por isso que agora cabe-nos provocar a fome de saber nessa juventude.

Gostaria eu de te passar minhas velhas gramáticas, mas não sei se te serão úteis. Afinal, os objetos diretos, os complementos nominais e os adjuntos adverbiais não vão mais te ser companheiros, eles definham exangues de desuso no fundo de estantes sebentas. Quanta saudade da oração subordinada adjetiva restritiva. Se não souberes o que é uma zeugma, não tem problema. Ela fugiu com o anacoluto e foi pedir pouso na Academia da Língua Portuguesa. Ali, os tropos com sua trupe já chegaram antes e ocuparam as últimas vagas do repouso absoluto. Um sujeito oculto já lhe fechou as portas, avisando que as recepcionistas, a vírgula e a cedilha, foram ao sepultamento do trema.

Estimado colega iniciante, mesmo com todas essas mudanças, ainda acredito na importância da leitura. Não uma leitura que se restrinja aos livros, mas a leitura do mundo, a leitura do que resta da natureza. Também precisamos ler o outro, perscrutar no nosso entorno, o sentido da vida. É importante observar as peles que nos revestem, a epiderme, a vestimenta, a casa que nos retém, a alma que nos mantém acesos. É preciso fechar os olhos para ver coisas que nossos sentidos escamoteiam. Nossas janelas da alma vão além dos sentidos e nos põem diante de nós mesmos. Precisamos nos conhecer primeiro para depois conhecermos os outros. Preciso me ler para aprender a te ler.

Não esqueças que a pedagogia muda todo dia para poder acompanhar as mudanças das pessoas. Entretanto ainda acredito no afeto, acredito nas pessoas, porque tenho tentado amá-las nas suas diferenças. Nessa tua sala de aula, cada ser humano é um mundo diferente que se projeta, é uma natureza diversa, uma interrogação pedindo para ser decifrada. Procura, pois, entre eles, crescer afetivamente para conseguir crescer efetivamente. Nesse teatro de arena que é a sala de aula, podes te tornar o ator mais proeminente, afinal trazes mais tempo de tablado do que a plateia que te ajuda a segurar o espetáculo.

Por fim, caríssimo colega, leva teus discípulos à terceira margem do rio, mostra-lhes aquela dimensão das coisas que só teus olhos avistam. Eles não querem um porto de chegada, querem apenas que indiques a direção para lá chegar. O resto eles constroem. Por todo esse tempo em que te antecedi, tenho tentado utilizar as coisas e amar as pessoas, mas não considero que tenha conseguido tudo que desejava. Conto pois contigo para continuar essa luta que, se não venci, passei a avistar a vitória sempre à minha frente. Portanto agora te deixo a direção apontada e creio na tua vitória final.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 30/05/2017.


 



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