Batista de Lima
Na noite em que Alonso botou sangue pela boca ele estava só. Sua mãe havia saído com uma amiga para olhar vitrines. Ele não se lembra se havia nuvens no céu nem estrelas brilhando. Não sabe nem se havia lua. Só se lembra do gosto de sangue na boca, a pia vermelha e depois branca, quando a torneira foi aberta e o vermelho desceu pelo ralo. Pensou primeiro no pai, depois na mãe e na viagem programada para Bogotá. Naquela noite apalpou o corpo, estalou os dedos e conversou demoradamente com as unhas. Mexeu alguns músculos e pensou em telefonar para si próprio. Teve uma pena muito grande de sua pequenez. Chorou baixinho para não despertar a noite e adormeceu como um anjo feito pêndulo.
Na segunda vez em que sangrou, Alonso não viu sangue, nem sentiu gosto na boca, mas tem certeza que sangrou. Sentiu vasar. Olhou-se todo e nada viu, mas sentiu. Abriu a porta e saiu sem querer, como se a casa o expelisse num sangramento muito maior que o seu. Tentou pensar nos amigos mas não conseguiu instalá-los na mente como se a memória se negasse àquela dor. Estava tudo tão vazio que ele começou a varrer o chão só para ouvir o som da vassoura. Mas uma brisa sem pedir licença veio lhe avisar que o vento tem lições de presságios. Chegou, mexeu com as plantas do jardim e abriu um pouco mais a porta para, sem pedir licença, incendiar de vida um retrato da parede.
Depois desses dois avisos, Alonso comprou uma vitrola que só tocava blues. Colocou naftalina no guarda-roupa. Depois viajou a Teresina como se fosse a Bogotá. Voltou um mês depois trazendo doces. Espanou a poeira das estantes com muita delicadeza para não acordar os autores que dormiam nos livros. Não teria resposta para o fato de nunca mais ter lido.
Escreveu um poema que falava de gruta, outro que falava de ostra e mais outro que não falava de nada. Deixou de dormir à tarde, desligou o telefone e empacotou o televisor. Passou a andar nu pela casa, procurando formigas e cupins pelos cantos dos quartos.
Mesmo assim, numa manhã de sábado, Alonso resolveu sair à rua, a convite da vida que lhe esperava ao portão de saída. Vagou com ela por vielas, como se fossem veias. Entortou caminhos, ouviu vozes, cuspiu na calçada, bocejou na praça e adormeceu num banco de jardim rodeado de flores e pombos.
Tomou sorvete de limão e comprou uma revista só de fotos. Chegado de volta à casa enraivecida com sua ausência, viajou pelas fotos em busca das pessoas retratadas. Foram dias de buscas de homens de gravatas e mulheres de brincos. Viajou por ruas, campos e até florestas em busca de gentes que dormiam na revista.
Na Semana Santa, Alonso vestiu-se de opa e capuz e entrou em penitência com mais onze companheiros que não conhecia. Vagou à noite pelas ribeiras cantando músicas tristes e cortando as costas com disciplinas de lâminas afiadas.
Eram doze apóstolos, carpindo pecados pesados, remindo culpas aninhadas na alma. Nesse grupo de fanáticos permaneceu três anos, se cortou dez vezes. Ganhou muita esmola e distribuiu bem mais. Certo dia, fugindo de um cachorro doido, e passando por cerca de arame farpado, feriu ambas as mãos e julgou-se um novo Cristo. Saiu pelas ruas mostrando as cicatrizes de uma crucificação que nunca houvera. Pregou para os pobres de espírito, para os desprovidos de bens, para os desprezados da sorte.
De pregador a fotógrafo, Alonso transitou sem trauma. Se antes salvava almas como pregador, agora iria salvar os corpos, nos retratos que produzia. Afinal, cada foto sua era uma epopeia de captação da imagem. Subia árvores, entrava em esgotos, usava guindastes. As peripécias mais extravagantes eram realizadas para conseguir a imagem certa, o ângulo apropriado e a iluminação adequada. Não aceitava pose. Captava a imagem do ser em estado mais natural possível. Daí que a única foto que conseguiu do avô foi com ele no caixão no dia do enterro. Afinal o velho sempre notava sua presença e olhava para a câmera. O fotografado não podia saber que estava sendo fotografado. Foi assim que fotografou o Senador Abreu de Sá com o dedo limpando o nariz.
Alonso, no entanto, ainda tentou outras profissões, e como tinha acontecido com o fotógrafo que não deu certo, também não se deu bem como rezador, coveiro, guia de cego e caboclo mamador. Como nada deu certo, resolveu se casar com uma mulher que o sustentasse. Começou um namoro com a professora Josefina Santiago, solteirona passada dos anos e carente dos afetos. Daí para o casamento foi um pulo. Ao ser perguntado sobre o que via na mulher que o atraíra ele acentuava a dentadura perfeita da moça, a saúde de ferro e a inteligência de professora diplomada.
Essas qualidades sustentaram por seis meses a fidelidade de Alonso. Findo esse prazo o marido recente fez sua primeira visita ao Bar da Bia. Não bebeu, não jogou, mas ofereceu-se para ensinar o dever de casa à filha de Bia que costumava estudar, sentada na cama e usando apenas roupas de baixo. Se nada mais aconteceu ficou no entanto a promessa de dois dias depois haver retorno para a resolução de problemas de Matemática. É evidente que o acontecido enramou-se rua afora indo produzir frutos nos ouvidos semi-surdos da professora esposa traída.
Não sabia Alonso que Josefina tinha curso de defesa pessoal, lutava boxe e tinha diploma guardado de judô, do tempo que estudara na capital. Por isso que na cama do hospital, olhando pela janela do quarto, Alonso contava estrelas do céu, sentia um gosto de sangue na boca e a falta dos dentes da frente. Doíam as duas costelas quebradas, isso sem contar o medo de uma visita de Josefina Santiago que saíra de casa com um porrete na mão em busca do Bar da Bia para ensinar dever de casa a filha da proprietária, ensinando-lhe os problemas da difícil regra de três. Quanto à mãe Alice, tinha viajado com outros aposentados para temporada em Bogotá.
FONTE: Diário do Nordeste - 05/06/12.
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