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  • Foto do escritorBatista de Lima

Por não fazermos nada

Batista de Lima


Eles chegaram à praia com suas esteiras e não voltaram ao fim da tarde. Depois trouxeram cadeiras que não levaram de volta. Foi então que armaram uma barraca para proteção do sol, e não dissemos nada. E como não dissemos nada, no dia seguinte estavam fixos, vendendo coisas. E nós olhávamos sem nada dizer. E como não dissemos nada, a barraca cresceu com suas cadeiras e mesas em busca do mar. Até gostamos de nelas nos sentarmos, no princípio, e pedirmos comilanças a preços alcançáveis.

Como não dissemos nada, outras barracas foram surgindo e se enramando pela areia. E os preços foram aumentando, as pessoas se empregando para atender tantos banhistas que não ligavam mais tanto para as ondas que vinham do mar, mas para as bebidas que vinham da terra.

E a areia foi sumindo sob o crescimento das barracas e da profusão de pernas finas e lisas das cadeiras desnudas que iam ocupando o lugar das gentes. Uma verdadeira Macondo ali se ergueu. De repente, mais de 150 barracas já estavam ali, disputando os grãos de areia e a fome e a sede dos pobres banhistas, sem mais lugar para espichar o corpo e captar o sol.

No auge desse apocalipse, feito curativo em ferida braba, chegou a lei e, do alto da sua frieza positivista, mandou todo mundo bater em arribada, dizendo que a praia é do povo como o céu é dos passarinhos. Certo, muito certo, certíssimo, para uma praia que só tem passado, pois depois que Inês é morta, não dá mais para mantê-la como Praia do Futuro.

Não dá mais para arrancar barracas cujas raízes vão mais além que das areias da praia. Milhares de pessoas agora sobrevivem do que os visitantes deixam nas suas areias. Toda uma vida lateja e cresce a partir do comércio ali florescido.

Como não dissemos nada, quando podíamos ter dito, agora nada podemos fazer. Talvez pegar o caos pelas pernas de suas cadeiras e ordená-lo, como dando um jeito naquilo que não tem mais jeito. A Praia do Futuro é um futuro sem solução, pois nos acostumamos a só resolver nossos dramas, quando não mais podemos resolvê-los.

Não praticamos a política da prevenção e do ordenamento antes do momento do sem jeito. O mesmo problema que ali se instala, ramifica-se pelas nossas praças que também deveriam ser do povo mas são dos camelôs, das bancas de revistas, dos engraxates, dos quiosques.

Como não dissemos nada, perdemos também nossas calçadas. As calçadas são das coisas que estão à venda e as ruas são dos carros e suas pressas. Não temos mais onde botar os pés, e nossos braços perderam até o jeito de promover os abraços. Mundo, mundo, vasto mundo, onde está a solução?

Se temos carro e estacionamos na rua, já vem o dono do pedaço e estabelece seu preço para nossa parada. E como nunca dissemos nada, nada mais podemos dizer. Nem no sinal de trânsito que temos que obedecer, podemos nos livrar da multa do limpador de para-brisa, que limpa o vidro limpo com uma mão e com a outra estira o pedido.

Ainda bem que temos nossas casas onde podemos nos aprisionar. São celas fortificadas, com portões de ferro, cadeados, fechaduras, cercas elétricas, alarmes, câmeras, cachorros treinados para proteger nossa prisão. Mesmo assim a milícia armada ainda vem dizer o preço da guarda que vem da rua, e dos perigos que correremos se não adotar sua proteção. E a cidade, como a praia, está esquadrinhada em territórios de protetores com suas taxas. E como não dissemos nada, agora nada podemos fazer.

Foi então que inventaram os shopping center, algo tão espetacular que nem nossa humilde Língua Portuguesa foi capaz de lhe doar um nome adequado. Verdadeiros templos onde nossos filhos se ajoelham em adoração diante de grifes, marcas e vitrines sacralizadas por trás de nomes estranhos. São basílicas que já nos cobram desde o portão de entrada. Nosso dízimo já escorrega do bolso antes mesmo de estacionarmos, se de veículo formos. Mesmo que nada compremos, mesmo que nada consumamos, nosso ingresso precisa ser pago.

Diante de tudo isso, o negócio é ir admirar os rios que cortam nossa cidade. É o sangue, é a seiva que descem das serras e vêm embelezar nossa urbe. Artérias de lirismo líquido, como é belo de uma sacada, observar um rio que passa, trazendo notícias de outras terras.

Triste engano do observador. Aquele rio que por ali está passando não é mais rio, não é mais vida. É uma injeção letal aplicada às entranhas da minha cidade combalida. Por ali desfilam esgotos, agrotóxicos, excrementos, lixos e tudo o mais que a vida rejeitou. Por ali desfilam os balseiros da nossa demência.

O pior é que esses rios vão sumindo debaixo do poderio das casas anfíbias que lhe ocupam as margens. As palafitas pescam da lama o produto da nossa imprudência. E se chove, se ocorre o milagre da precipitação pluviométrica, as casas afundam e as gentes são levadas pelos bueiros, porque não fizemos nada.

E diante de tanta calamidade, só resta ao observador acender sua lâmpada e sair pelas ruas esburacadas em busca do esconderijo da vida. Essa paisagem devastada, esse chão contaminado, essa água envenenada olham-nos constipados e moribundos. Afinal, por não dizermos nada, por não fazermos nada, agora, nada podemos fazer.


jbatista@unifor.br

08/02/11.

 

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