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Poemas da Ilha

Batista de Lima


Essas observações subjetivas só podem ser captadas pelo olhar poético. É um olhar que vê em cada atração do arquipélago, uma mensagem transfigurada. É por isso que ao cantar as duas grandes pedras feito ilhas, São Cosme e São Damião, no poema "Dois irmãos", o poeta estabelece dicotomias que entrelaçam metonímias e metáforas, formulando signos em que os significantes se tornam portas de entrada para significados vários.

Ricardo Alcântara é figura singular. Faz literatura, no Ceará, sem fazer parte de nenhum grupo, ou academia, ou antologia, ou jornal alternativo. É independente dos costumes literários de nossa província. Apenas me lembro que o grupo Arsenal do qual fazíamos parte com Floriano Martins, Paulo Barbosa e Severiano Júnior, reunia-se muitas vezes no Barnhambi, na Visconde do Rio Branco, próximo à casa do cantor e compositor Ednardo. Às vezes o Ricardo aparecia, papeava e desaparecia. Não fazia, oficialmente, parte do grupo.

Tempos depois aparece Ricardo como ganhador do Prêmio Osmundo Pontes de Literatura, ao lado de Barros Pinho, em noite festiva no final de 2009, anfitrionado por Dona Cibele Pontes, no Gran Marquise. Logo em seguida o correio me traz livro seu que não é o ganhador do prêmio, mas publicação anterior, com o título "Ilha - Poemas e Postais". É um primor visual, todo em azul, da capa às ilustrações que tratam da ilha de Fernando de Noronha. Dá para ler de uma sentada, mas o efeito da leitura é inebriante e ao mesmo tempo um convite para se conhecer aquela ilha paradisíaca.

O resultado da leitura desse livro de Ricardo Alcântara é o oposto do que se instaura após a leitura de "O Canduru", de Rodolfo Teófilo. Na narrativa do Benemérito da Pátria, um negro, prisioneiro em Fernando de Noronha, improvisa uma rudimentar embarcação clandestina e se larga daquela ilha vindo dar exaurido nas praias cearenses onde a polícia o prende, mandando-o de volta àquela ilha presídio. Quando se leem os poemas de Ricardo, sente-se vontade de correr a uma agência, comprar a passagem aérea e ir a Fernando de Noronha. O livro é pois um veículo publicitário da famosa ilha, não só pelos poemas mas também pelos postais apresentados.

É por isso que o subtítulo da obra é "Roteiro Poético do Arquipélago Fernando de Noronha". Como diz o autor, o livro é "uma declaração de amor à moda antiga, de uma ingenuidade sem pudor". Na sua primeira viagem à Ilha, houve o alumbramento, diante da exuberância poética que dali se espraia. É tanto que no retorno, ainda no avião, os poemas foram fluindo em correnteza e o livro foi gerado.

Logo no primeiro poema, "dizem que deus mora na crista/ das ondas de janeiro/ disfarçado de surfista/ (um deus feliz, brasileiro)". Depois vem "Forte dos Remédios" com imagem cedida por Emerson Nilson. Mesmo cantando as delícias da ilha e o fantástico do Forte, o poeta não deixa de lembrar que "A ilha, sempre cortejada, / a muitos matou de tédio". No poema seguinte "Dança com raias", ele adverte: "Quem não for da nossa praia/ que chegue bem devagar." E é necessária essa advertência pois o turismo se não for controlado, devasta o ecossistema ali reinante. Fernando de Noronha é um dos poucos locais brasileiros onde o fluxo turístico é controlado em benefício da ecologia.

O Mirante da Raquel, outro ponto de atração de Fernando de Noronha, aureolado de uma atmosfera fantástica, é retratado pelo poeta que canta: "Onde se escondeu Raquel/ que encanta os navegantes/ com seus olhares faceiros?/ Foi namorar marinheiros/ vindos em naves errantes?" Esses versos e outros, que mapeiam a Ilha, vêm cada um com sua ilustração caprichada sempre preservando o azul do céu que se confunde com o azul do mar. São ilustrações de belezas naturais, com exceção apenas do forte e da igreja dos remédios. É como se os dois estivessem ali de vigília, o poder militar de proteção ao lado do poder religioso simbolizado pela capela em estilo colonial.

Essas observações subjetivas só podem ser captadas pelo olhar poético. É um olhar que vê em cada atração do arquipélago, uma mensagem transfigurada. É por isso que ao cantar as duas grandes pedras feito ilhas, São Cosme e São Damião, no poema "Dois irmãos", o poeta estabelece dicotomias que entrelaçam metonímias e metáforas, formulando signos em que os significantes se tornam portas de entrada para significados vários. "Há um mistério escondido/ nas pedras dos Dois Irmãos/ que só pode ser percebido/ com os olhos do coração." Nesse caminho ele chega até à Ilha do Frade e verbera no auge do encantamento: "O dia é como um deus nu: / sobre o mar de azul turmalina/ se ergue no céu outro azul/ de luz ainda mais cristalina".

Esse passeio de Ricardo Alcântara sobre Fernando de Noronha não se resumiu apenas ao relevo que ali se posta diante dos olhares dos visitantes comuns. O escritor captou algo que transcende de tudo que se olha mas não se avista nas dimensões subjetivas. A Praia do Cachorro não é uma praia qualquer, aos seus olhos. A Viuvinha do Morro não é apenas um pássaro, é muito mais um vôo, uma vertigem. O Morro do Pico não é apenas um morro, mas um vigilante imparcial diante dos invasores inescrupulosos. O Atobá não é apenas pescador de sardinhas mas um pintor de azuis aquarelas. E assim vão surgindo com suas múltiplas dimensões: o Mirante do Boldró, a Baía dos Porcos, a Donzela de Fogo, a Praia do Sancho, a Enseada dos Golfinhos, o Portal da Sapata, a Praia do Leão, a Baía do Sueste e a Atabaia.

Cada uma dessas atrações, depois de cantadas por Ricardo Alcântara, elastecem suas dimensões físicas e subjetivas. Isso faz com que o aparentemente simples arquipélago de Fernando de Noronha tome ares de continente. Afinal, qual a ilha que não instaura um continente? Só o bom poeta consegue esse milagre de transformação.


jbatista@unifor.br

02/02/10.

 

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