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  • Foto do escritorBatista de Lima

Pintando e bordando

Batista de Lima


Os dois sentados na cama, a mulher já quase sem roupa, o olhar de Jacinto entretanto voltou-se feito em desejo para uma boneca de louça (...) que sentada estava rindo na mesinha posta ao lado. (...)O rapaz sacou de um pente do bolso e com carinho e ternura começou a pentear com volúpia os cabelos longos em cachos daquela boneca graúda.

Gerôncio Torres já havia feito quinze filhos na sua esposa Bilinha quando ela pariu o último. Essa décima sexta cria era ponta de rama, murcho, morre-não-morre, mas teve direito a um nome, Jacinto. Cresceu gasturento, remelento, cambota e canhoto. Não aprendeu a ler nem a escrever porque não despregava do cóis da saia da mãe, com suas carências de cafunés diários. As poucas saídas de casa era para o engenho para brincar com seu amigo Manilto, um negrinho que havia sobrado de uma moagem e ficara por ali sem pai, sem mãe, sem rumo. O Coronel resolvera criá-lo.

Os dois brincavam de queda de corpo e rolavam pelo bagaço fresco da cana moída. Dona Bilinha ralhava com o fedelho que voltava para casa de roupa encardida. Daí que os dois criaram o costume de brincarem nus para não sujar as roupas. Depois pulavam na água fresca do açude próximo onde passavam horas nesses folguedos a dois. Coronel Gerôncio começava a se preocupar com o seu caçula. O menino não engrossava a fala, não montava burro brabo e, por cima, tinha esse chamego com o negro Manilto em andanças pelos pés de cerca, por baixo das mangueiras e em banhos demorados, manhãs inteiras.

Antes de chegar aos quinze anos, empenujando ainda, o Coronel resolveu fazer a viagem à capital com seu rebento, como fizera com os outros irmãos maiores. A desculpa da viagem, como sempre, era mostrar o mar para o herdeiro. Jacinto estava louco para conhecer o oceano e trazer um litro de água salgada para juntamente com Manilto jogar no açude de seu pai e ver as ondas ali se instalarem. Entretanto, a intenção de Gerôncio Torres era, como sempre, outra bem mais picante de que um simples banho de mar, e de que aquela viagem de trem por um dia e uma noite, atravessando o sertão.

Chegados à grande cidade e bem dormidos no hotel de Ricardina Amaral, tiraram a primeira manhã para visitar o mar o que muito empolgou Jacinto. Lá estava um açude imenso desses que não tem parede, com águas feitas de sal e ondas tocadas do cão. Jacinto, pisando na ponta dos pés, com água no meio da canela, conseguiu encher a garrafa das águas salgadas do mar, fazendo de cortiça a tampa, para aquela prisão segura, das ondas que iam mexer, as águas tristes e paradas do açude do pé da serra. Era esse o presente prometido ao negrinho seu parceiro nas cirandas dos mergulhos.

À tarde do mesmo dia, coronel Jacinto Torres levou seu filho caçula a outro mar diferente, era um oceano de gente que não parava de andar nem boa tarde dizia. Subiram os dois certa escada que deu de frente a um salão, onde a luz vermelha coloria o rosto de muitas damas sentadas com roupas de quem se acordara. O Coronel chamou uma delas e lhe passou a mão do filho dizendo de pé de ouvido que era iniciação. A dona, cheirando a almíscar, levou Jacinto a um quarto todo forrado de rubro onde uma cama bem larga dessas de madeira dura parecia tomar conta do ambiente quase todo.

Os dois sentados na cama, a mulher já quase sem roupa, o olhar de Jacinto entretanto voltou-se feito em desejo para uma boneca de louça bem vestida e bem pintada, de longos cabelos louros que sentada estava rindo na mesinha posta ao lado. De ínoprino o rapaz sacou de um pente do bolso e com carinho e ternura começou a pentear com volúpia os cabelos longos em cachos daquela boneca graúda. A outra boneca maior, feita de carne e de osso, parou de tirar a roupa, recostou-se no espaldar e deixou que Jacinto Torres penteasse sua boneca, matando desejo antigo que suas irmãs lá do sítio, em momentos de brinquedo, proibiram o irmão mais novo de tocar suas calungas.

Após tanta penteação daquela boneca de louça, Jacinto, sem falar nada, voltou-se de pente e ternura para desencaracolar os cabelos da mulher, paga para lhe iniciar. Penteou, deu cafuné, naqueles cabelos sedosos da rameira cochilante, imitando no cabelo dela, o mesmo que fez na boneca. Sem usar maledicência, foi à mesinha de lado, onde uma cuia jazia com trastes que se pinta unha. Tirou o esmalte velho do unhal de sua parceira depois coloriu com gosto dedos das mãos e dos pés mostrando desenvoltura de velho na profissão.

Depois de manicurar aquela moça em silêncio, descobriu o rapaz imberbe no canto esquerdo do quarto um pedaço de mandapolão com bordado iniciado. Sacou Jacinto da agulha que já vinha posta com linha e com gesto de quem já sabe, começou a bordar também. Bordou a peça e outras mais enquanto o sol pelas frechas já dava sinal de fraqueza no tecido daquela tarde. Enquanto isso lá fora, seu pai no oitavo uísque já malhado de batom, contava para as meninas, as virtudes do menino em missão tão demorada.

No quarto Jacinto e a cunhã resolveram tomar um banho com ervas, e depois se perfumaram para voltar ao salão. Foi então que eles falaram palavras de donzelices, de bordados, de bonecas, de fazimento de unhas, coroando o conversar com projetos de parcerias com seus príncipes encantados. Falaram de ponto de cruz e varanda, de som de radiadora, da arte de bem andar para impressionar rapaz, na festa da padroeira. Depois, com muito talco e loção com ares de felicidade se dirigiram ao salão onde o coronel orgulhoso ouviu da boca da moça, que no seu quarto de amor, Jacinto pintou e bordou.


jbatista@unifor.br

23/11/10.

 

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