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  • Foto do escritorBatista de Lima

Patas, coices e pneus

Batista de Lima


Foi-se o tempo em que o orgulho do jovem era cavalgar um bonito cavalo com sela, bride e cabresto. (...) Isso tudo leva a uma mitologia consumista, que conduz o sonho de todo adolescente à chegada do dia em que vai possuir sua moto. Afinal, os cavalos de hoje são destinados apenas às competições. Os pangarés chegaram ao fim de seus dias. Agora é cavalo banhado com xampu, vacinado como bebê, infiltrado com anabolizante.

Era uma vez um animal quadrúpede, utilizado para transporte de pessoas e de mercadorias. Seu nome - cavalo. Cavaleiros eram aqueles que os cavalgavam. Encurtavam as distâncias, guerreavam. Surgiram então a cavalaria e a cavalgada. Almocreves, miçangueiros, recadeiros, cambiteiros, tropeiros, tangerinos, todos utilizavam cavalos para seus misteres. Essas são palavras fadadas ao esquecimento, como "miçangueiro" que nem aparece mais nos dicionários. Afinal, quando o ser sai de uso, a palavra que o nomeia o acompanha.

Era uma vez o burro. Filho do cavalo com a jumenta, ou do jumento com a égua, o burro, híbrido, é condenado à extinção. Próprio para cargas e carroças, de tão burro, vai morrer como substantivo e como adjetivo, para gáudio dos néscios e das vítimas dos coices. Já o jumento, nem se fala. Nem valeram as campanhas do Padre Antônio Vieira em torno do ásino. Seu livro "O jumento nosso irmão" nem é mais falado. Apenas hoje se sabe que o empresário Jaime Aquino, da Cione, possui uma reserva com criatório de jumentos.

Foi-se o tempo em que o orgulho do jovem era cavalgar um bonito cavalo com sela, bride, cabresto, corona e coxim. E as histórias de cavalos célebres enfeitavam os livros de aventuras. Dom Quixote perseguia seus sonhos no lendário Rocinante. Belerofonte corria mundo em seu Pégaso. Alexandre Magno guerreava no seu Bucéfalo. Orlando Furioso cavalgava seu Brilhadouro. Reinaldo de Montalvão era mais guerreiro quando montava seu Baiarte. Frontino era de Rugero. Orélia era de Rodrigo, dos godos, que com ele se foi no campo de batalha. Quem não se lembra de Incitatus, que o louco do imperador romano Calígula o transformou em senador? Quantos cavalos povoam as histórias de cavalaria e os filmes de faroeste. Tudo pois é passado. Onde anda Silver com o Zorro no seu lombo?

Os heróis de hoje estão nas motos. Até o sertanejo agora é antes de tudo um motoqueiro. A feira dos animais, nas pequenas cidades, deu lugar à feira das motos. O capim deu lugar à gasolina.

Daqui a pouco vai ter gente que ao chegar no cambista da Loteria dos Sonhos vai jogar um real nas dezenas da moto. - Bota aí 41, 42, 43 e 44. O jogo do bicho vai perder seu primeiro animal e ganhar sua primeira máquina. Não vai ser entendido quem disser - Pode tirar seu cavalinho da chuva. É preciso dizer - Pode tirar sua mobilete da neblina. A mula sem cabeça vai virar moto sem pedal. As esporas vão dar lugar ao acelerador. E como já tem matuto indo buscar as vacas no roçado, de moto, não será surpresa quando se inventar vaquejada com vaqueiros motoqueiros.

Isso tudo leva a uma mitologia consumista, que conduz o sonho de todo adolescente à chegada do dia em que vai possuir sua moto. Afinal, os cavalos de hoje são destinados apenas às competições. Os pangarés chegaram ao fim de seus dias. Agora é cavalo banhado com xampu, vacinado como bebê, infiltrado com anabolizante, paparicado como almofadinha. Cavalo agora é só para vaquejada e corrida em hipódromos, derbys e prados. Mas pior ainda é o burro, que nem se vê mais por aí, porque não se sabe mais para que serve um burro, e péssima é a situação do jumento que só aparece quando vira carcaça atropelada nas rodovias da modernidade.

Com o declínio do cavalo até parece que realmente comprova-se o declínio do macho. Cavalo sempre teve nomes masculinos, entre nós: Pavão, Melado, Piloto, Jeitoso, Bem feito, Mimoso, Cartuxo, Charuto, Carcará, General e Elefante. Já as motos por serem femininas são Margarida, Luana, Madona, Bruna Sufistinha, Gata, Piveta, Princesa, Rainha, Fantinha, Xururuca, Chapinha, Boneca, Ivete, Sofia e Chiquitita. O motoqueiro, ou vaqueiro pós-moderno, em vez de jibão, usa jaqueta, em vez de suor, cheira a chanel, em vez de esporas, vai de tênis e peircing, em vez de chapéu de couro, usa brincos, em vez de brilhantina, usa gel.

O pior de tudo isso é que futuras gerações vão ter dificuldade de entender porque presente de grego é cavalo e não moto. Não vão entender porque no domingo de ramos Cristo entrou em Jerusalém num reles jumento e não numa 150 cilindradas. Também jamais exibirão com orgulho a cicatriz de um coice. Há muito mais filosofia, antropologia e prosopopéia na dor do coice nas costelas do que a queimadura de um escape quente na batata da perna, ou a morte num derrapar de pneus, ou o estraçalhar-se em um asfalto inglório. Quantas lições já foram tiradas do coice. Quanta ternura vem depois do coice. Mas na moto não há amansar. É sempre ferro, é sempre gemido de escape afora.

Por fim, quero cantar a rapidez da moto, a delícia do progresso e o cheiro da gasolina queimada. Mas muito mais cantar preciso, o trote do cavalo marchador, o coração valente que pulsa entre meus pés cavaleiros e o suor do meu corpo que se mistura no suor do seu esforço quase humano em léguas ladeirentas. Meu cavalo de botas sete léguas me conduz entre serras, grotões e pedreiras, mas minha moto 750 não gosta dos socavões, não relincha sozinha na pastagem, nem se reproduz em idílios de prazer. Assim sendo, ou não sendo, salvemos o cavalo, o burro e o jumento, o coice, a patada e a mordida, a sela, a cangalha e o cabeçote, o cambito, o caçuá e a rabichola. Salvemos esses animais tão puros e úteis para que ao final de tudo fiquem apenas eles como os únicos filhos da égua.


jbatista@unifor.br

23/02/10.

 

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