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  • Foto do escritorBatista de Lima

Paranoia


Batista de Lima



Está cada vez mais difícil se falar de flores, ou encontrar a felicidade ao se abrir uma janela. Está difícil sonhar deitado na relva ou pegando sol numa praia. Está cada vez mais difícil o devaneio. A conversa na calçada virou memória de tempos idos. As praças não são mais confiáveis. O céu é só dos aviões. A lua fez feriado e as estrelas lhe seguiram os passos. A brisa se choca nos grandes prédios e retorna ao mar lacrimejando orfandade. As ruas são dos carros, os rios são do lixo. As casas são prisões de muros altos, cercas elétricas, alarmes, câmeras e cães mordedores. As casas são campos de concentração.

As notícias são tantas que as novidades não são mais novas. Há tanta informação que não há informação alguma. Perdemos de vez o contato com o detalhe. Só enormes hecatombes nos sensibilizam. Não há mais ninguém observando a folha que cai. Nuvens, será que elas ainda desfilam no azul do céu? A lágrima no olho do peixe do aquário não interessa mais. O mundo todo está na ponta dos nossos dedos. O teclado nos leva para qualquer lugar em tempo real. São lugares que vemos, mas não avistamos. São lugares por onde deslizamos.

Estamos, no entanto, presos, quando os que deveriam estar presos estão soltos. A insegurança é servida a cada instante em pratos de fobia. As pessoas já formulam dicas de comportamento para sobreviver. Já é possível a elaboração de um manual de sobrevivência. Ao sair de casa, é entregar a alma a Deus, despedir-se dos familiares como quem parte para não voltar. Ao voltar, festejar o retorno como um renascimento. Se o sinal do trânsito fechar, guardar metros e mais metros do carro da frente, acelerar o motor e já estudar a possibilidade da fuga ante a aproximação de alguém.

Aquele que se aproxima tem tudo para trazer a morte às mãos. Por isso fechamo-nos em claustros de vidro fumê e lataria blindada. Em qualquer roda de conversa, mesmo sendo rara a troca de palavras, o assunto é o assalto que cada um já sofreu. Até parece que há uma certa disputa ao se contarem casos de violência. Cada um tem sua história, cada um foi vítima e a questão é saber qual o caso mais ensanguentado, quantas mortes no fim de semana. Esses assuntos se sobrepõem a todos os outros, como futebol, novela, política e fofoca.

Há um medo medrando o entorno de cada um. Não é medo de bomba atômica, de terremoto ou tsunami. É medo daquele que de nós se aproxima, como se uma simples saudação possa ser um assalto. Essa neura coletiva está entupindo as clínicas psiquiátricas e fazendo a festa dos psicólogos. Se antigamente era raridade alguém fazer terapia, hoje a raridade está por conta dos que não procuram terapeuta. É considerado um relaxado, hoje em dia, aquele que não faz terapia. É considerado descuidado, aquele que não toma medicamento contra estresse. Daí que um dos assuntos corriqueiros entre pessoas próximas gira em torno da pilha de medicamentos que se dispõe em casa contra as dores do corpo e os sofrimentos da alma.

Antes da célebre pergunta "onde vamos parar?" é preciso formular sugestões viáveis para o arrefecimento da violência. Primeiramente, o que se vê é que essa violência é oriunda principalmente do meio dos jovens, e que a reboque dela está o consumo de drogas e a desocupação. A garotada passa o dia na rua, na escola da marginalidade. Daí que uma das soluções estaria na escola de tempo integral. Era só observar o bairro onde maior é o índice de violência e o consumo de drogas. Ali seria construído um bom colégio de tempo integral com ensino fundamental e médio. Sairia mais barato que construir um novo presídio.

Outro fator que gera desconforto e violência numa cidade como a nossa Fortaleza está no fato da periferia ser desassistida. Uma cidade com 2,5 milhões de habitantes e um cinturão de mais de duas centenas de favelas possui uma centralidade única. O subúrbio não proporciona a seus moradores a infraestrutura para o bem viver. Fortaleza poderia ser um conglomerado de centros com vida própria. O bairro distante poderia dispor de colégio, centros comunitários, praças e serviços à disposição dos moradores. Seriam pequenas cidades que juntas formariam a grande cidade.

Além disso há o fato de que a sociedade civil não se organiza em grupos de discussão sobre nossos problemas urbanos. Nós cobramos muito mais do que sugerimos. A imobilidade urbana, a violência e a má qualidade da educação são do conhecimento geral mas são pouquíssimas as entidades sociais que elaboram uma pauta de sugestões para os governantes. O governo em seus três níveis, municipal, estadual e federal, é tido como o grande pai, aquele que retém a solução para todos os nossos problemas. Acontece que nós também podemos ter soluções. Precisamos voltar a abrir nossas portas, frequentar nossas praças e tentar falar também de flores.


FONTE: Jornal Diário do Nordeste - 10/12/13.


 

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